Acabo de saber pela internet que Suzanne Richthofen, presa há doze anos pela morte de seus pais, escreveu à Juíza de Execuções Penas que lhe autorizou o regime semi-aberto um pedido de adiamento de sua progressão de pena. O simbolismo do ato, em suas circunstâncias específicas, me tornou pensativo. São várias as camadas de perguntas que me apareceram ao julgar, mentalmente, o que pode andar pela cabecinha da moça. Eu quase tenho pena dela, daí me lembro que ela não cometeu um crime qualquer. Então continuo tendo pena dela, porque a enormidade de certos crimes já é uma grande pena. Triste o ser humano que comete certos atos: por cometê-los ele já se brutaliza e, se nunca se arrepende deles, está condenado a uma vida horrível, a vida dos insensíveis. Suzanne Richthofen está reduzida, agora, a uma criatura meio digna de pena. De pena capital, talvez, mas também da compaixão humana.
A enormidade do crime, quando cometido por uma pessoa normal, não psicótica, deve trazer um impacto devastador sobre a saúde mental. A ficha pode demorar a cair, mas, se você não nasceu sem empatia, se não é um psicopata frio, a ficha eventualmente cai. Quão terrível deve ser esse momento, seja ele na solidão de casa, a salvo da lei, posto que a lei reluta especialmente diante dos culpados, ou dentro de uma cela. A parede está lá, o concreto está lá. Pessoas de verdade, pessoas que ainda são humanas, enfrentam esse momento com dor.
Ficar preso deve ser uma das coisas mais angustiantes a que um ser humano pode ser submetido. Talvez uma prisão rigorosa consiga ser mais cruel do que uma decapitação. A pena de morte é definitiva, sim, é irretratável e total, mas ela não tem prolongamento e nem desdobramentos. A luz pode bruxulear na hora de se apagar, mas apagada não mais está presente. Que dizer de quem enfrenta uma pena longa?
Nascemos para a liberdade. Quão potente deve ser a desgraça de quem permanece tanto tempo preso que desaprende a ser livre? Suzanne Richthofen pediu à juíza que adie sua transferência ao regime semiaberto porque não deseja deixar o presídio onde atualmente cumpre pena. Diz depender do salário que recebe por seu trabalho ali (que certamente não é muito) e que deseja reduzir a pena com este serviço.
Penso que a juíza deverá negar o pedido. Não cabe ao apenado decidir sobre seu destino. Não em um sistema judicial sério. Ao receber a pena, ainda mais em um sistema como o nosso, que se baseia na ideia (em minha opinião ingênua) de que se pode recuperar a todo criminoso, o indivíduo é privado de sua liberdade. Não apenas do direito de ir e vir, mas do direito de ficar. Não apenas do direito de fazer o que quer, mas do direito de não fazer o que não quer. Prisão implica em coerção. O criminoso pode, e de fato deveria, ser coagido, até mesmo pela violência, se preciso, a cumprir com um sistema de regras e tarefas. Este sistema, em tese, teria a função de reeducá-lo e preparar sua reinserção na sociedade. Alguém que quebrou as regras da sociedade deve ser acostumado a segui-las.
Além disso, os psicólogos costumam dizer que o psicopata é um enganador por natureza, capaz de explorar a empatia dos “trouxas”. Talvez ela só esteja se fazendo de coitada, para atrair a empatia de gente como eu, que se comove com a dor alheia, mesmo a de quem merece a dor. Na verdade, e isso nem sou eu que digo, mas um psicólogo forense, somente um psicopata da pior espécie consegue viver em uma prisão sem jamais infringir as regras. Sendo a prisão um ambiente desumano por excelência, para ter sucesso nela é preciso ser desumano. Olhando por este lado, é um erro que os sistemas prisionais privilegiem o bom comportamento. Deveriam privilegiar justamente o inconformismo. O bom comportamento revela alguém que se alienou, que não conseguirá mais viver em liberdade porque esqueceu a liberdade. O bom comportamento revela alguém que aprendeu a jogar pelas regras para sair o mais cedo possível. Revela justamente quem não pode sair.
Tenho diante de mim uma moeda e jogo cara ou coroa para saber se Suzanne é só uma menina tola que se meteu com drogas e também substâncias entorpecentes (sic) e com isso participou da morte dos próprios pais, ou se é uma criminosa fria e sem remorsos que até agora joga com maestria o Big Brother da prisão para sair, se não o mais cedo possível, pois isto a opinião pública represou várias vezes, pelo menos de maneira definitiva. Cara, Suzanne má. Coroa, Suzanne boa. Cara, Suzanne sairá agora, e se dará bem, talvez tenha acesso às contas dos pais mortos na Suíça, esperará que a poeira baixe e emigrará em silêncio. Coroa, Suzanne seria avaliada como inapta pelos psicólogos forenses (se estes decidissem). Desaprendeu a liberdade, vai sair da cadeia como um cachorrinho acuado, será hostilizada na rua e, se não cometer o suicídio cedo e nem for linchada por gente que se acha digna de atirar a primeira pedra até em Cristo redivivo, acabará seus dias como uma velha pobre, louca e sem família.
Suzanne má é uma pessoa fácil de recuperar para a sociedade. Talvez até ganhe da justiça o direito a uma nova identidade, para remover a marca de Caim de sua face. Suzanne má parece tão boazinha… Suzanne boa é um caso perdido. Ninguém lhe dará a mão, ninguém lhe dará sequer um bom-dia.