Depois de semanas anunciando que apareceria no lançamento dos livros da Caligo Editora, vi-me gentilmente forçado pelas circunstâncias a comparecer, superando minha verdadeira paúra de cidade grande. O bugre aqui, como ninguém deve saber, é nativo da roça com orgulho, do tipo que se espanta com o burburinho de Juiz de Fora e que, em outros tempos, ao ouvir o noticiário policial das rádios Record e Globo, jurava diante da mãe que nunca poria os pés em São Paulo ou no Rio de Janeiro.
Mas a vida não é assim: a gente vai crescendo e se acostumando, até com o imponderável. Muito embora eu tenha pisado em outro país antes de ter pisado em qualquer das duas cidades (pisar no aeroporto não é bem exatamente pisar na cidade), eu acabei convencendo meio mundo, a mim e à minha mãe, que não haveria mal algum em me aventurar nas metrópoles, ainda mais porque ando em Belo Horizonte mais ou menos uma vez cada nove ou dez meses, e a nossa capital estadual, há um bom tempo, anda mais perigosa do que qualquer mãe supõe.
A São Paulo mesmo eu só não fora por falta de motivo e excesso de distância. Quando construíram o aeroporto regional, em Goianá, eu até fiquei animado com a possibilidade de viajar mais longe e mais fácil, mas de nada adianta ir mais rápido se eu tiver que ir sem um olho da cara e uma perna.
Claro que tudo correu tranquilamente, pelo menos tão tranquilamente quanto possível, dada a distância e o tempo curto, que não me permitiu aproveitar quase nada. Fui de ônibus, partindo à meia-noite de Juiz de Fora, o famoso “corujão da Cometa”. Cheguei em Sampa às 7h30, meio amarrotado, um tanto sonolento e com as pernas dormentes, implorando por uma caminhada. Conforme prometido (e eu estava duvidando muito) a escritora e designer Márcia Saito estava me esperando no Terminal Tietê, para ser minha cicerone nos dois dias que pude passar na cidade. Sua presteza em me fazer companhia nesses dois dias me fez ter a estranha e inesperada sensação de que ela é a minha primeira fã. Só desejo que não permaneça a única…
Por sorte Márcia parece ter boa disposição para caminhar, e nem se assustou com as minhas pernas longas. É verdade que eu não soltei meu passo de ganso, num gesto de cavalheirismo, mas em vários momentos ela me deu a entender que suportaria um ritmo mais forte do que o imposto por meu cansaço matinal.
Ocorre que existem certas estranhezas na gente, que só são perceptíveis quando as contemplamos de bem longe. Há uma certa segurança psicológica em Belo Horizonte, talvez porque, apesar do tamanho intimidador, do trânsito louco, da violência urbana e da feiúra que acomete boa parte de suas ruas, a cidade ainda tem um misterioso ar provinciano, que se expressa no falar dos moradores, uma familiaridade que se nota nas camisas do Atlético Mineiro e, argh!, do Cruzeiro e algumas outras coisas meio inexplicáveis. Daí eu me sentir em casa quando vou a Beagá, mas me sentir um turista quando vou ao Rio de Janeiro (e já fora três vezes antes desta minha ida a São Paulo).
Sim, já fui ao Rio. De uma feita passei por lá dois pernoites, em 2010, quando participei do Festival Cultural Banco do Brasil. As outras vezes foram mais breves e a primeira delas foi marcada pela mais sensacional saudação que uma criatura já ofereceu a uma cidade ao adentrar seus limites: o abundante vômito pela janela do ônibus que eu espalhei pela rua ao passar pelo mangue a caminho da Rodoviária Novo Rio.
Como meu registro no hotel só poderia ser feito a partir das 13h00, aceitei o convite da Márcia para gastar a manhã a conhecer a Pinacoteca do Estado (a ideia original era irmos ao Museu da Língua Portuguesa, na Estação da Luz, mas, instável que sou, acabei desanimando com o tamanho da fila e resolvi atravessar a rua). O passeio à Pinacoteca não chegou a ser memorável pelo curto tempo que pudemos estar ali. Arte é uma coisa que precisamos de tempo para apreciar. Não são quaisquer três horas de caminhada que satisfazem. Pode-se, nesse tempo, percorrer todas as salas de um museu, mas que inútil ginástica essa caminhada, se o ritmo da alma não consegue apreciar e absorver tanta pintura, tanta escultura, tanta cor e tanta forma. Ao cabo de pouco mais de uma hora eu já me sentia mentalmente exausto, cansado de tanta arte e já não conseguindo discernir o que era belo e o que era apenas engraçadinho. Depois de tantos quadros interessantes, no final eu contemplei a fonte das mulheres no pátio interno da Pinacoteca e sorri daquele jeito pueril que indica a superficialidade. As pessoas que estão cheias até a borda parecem superficiais, especialmente se a água é turva. Ali na Pinacoteca eu me senti tão cheio de arte que me reduzi ao comportamento de um garoto de nove anos que vê um desenho engraçado. Talvez eu precise me acostumar com o programa e o lugar, para não ser cheio tão fácil.
Sozinho no quarto de hotel, depois de um banho rápido, em respeito ao aperto dos paulistas com São Pedro, liguei a televisão e dormi uma soneca daquelas com trilha sonora de serrote, da qual só fui salvo pelo cronômetro do celular. Tomei um táxi e fui para o Canto Madalena, um bar simpático, com ares de interior e de antigamente. Minha pressa acabou me levando ao lugar antes de todo mundo, inclusive a Bia, que deveria ser a responsável pela abertura dos trabalhos. Meio sem graça, fui a um mercadinho próximo, onde saquei cem reais num Banco 24horas e matei o tempo tomando água mineral com gás. Tanta água que já cheguei depois ao bar, de volta, utilizando os serviços do banheiro.
A noite em si começou quando reconheci a Bia em uma mesa ao fundo e a cumprimentei com uma voz tão efusiva e cheia de alívio que ela, meio espantada, até travou ao responder. Era apenas a satisfação de encontrar um rosto conhecido, ou algo assim, em uma cidade onde eu era um estranho. Depois fui me acostumando com a ideia e os outros foram chegando. Sou péssimo para memórias sequenciais, mas acho que foram o Thiago Prada, o Pedro Vianna, o Vítor de Toledo Stuani, Fernando Abreu, o Fábio Batista, a Thata Pereira, Marcello Pietragalla, o Felipe Holloway e a Márcia Saito. Apareceram vários leitores e curiosos (alguns dentre os que estavam frequentando o bar) e já no fim da noite apareceram a Martha Ângelo e o Sérgio Ferrari (último a chegar).
Não tenho muita lembrança do que exatamente aconteceu. Foi tudo tão rápido e eu passei tanto tempo falando de literatura que não tive muito tempo para perceber se havia alguma coisa acontecendo em volta. Autógrafo é pior do que uísque: depois do segundo você já se sente alto e começa a não entender direito o que está rodando em volta. Na verdade a conversa só começou a atingir áreas extraliterárias quando o Sérgio Ferrari chegou. Aí tivemos nossa sessão nostalgia dos tempos do Orkut, que, curiosamente, começou quando exatamente ele reagiu com asco à minha observação de que estávamos ali em “uma espécie de orkontro”.
Foi uma noite bacana, em que tive a oportunidade de apertar a mão de pessoas que eram só quadradinhos na tela do computador, mas agora adquiriram materialidade na minha memória.
Acabamos terminando cedo. Por causa dos horários de ônibus e metrô, dentre todos os motivos. Que cidade mais estranha essa São Paulo de milhões de habitantes que ainda obriga seus cidadãos sem carro a voltar para casa cedo porque o transporte público pára de circular à meia-noite. Isto é tão… tão Cataguases dos anos 80…
Voltei para o hotel, dormi um sono de oito horas e fui para a Rodoviária, onde esperava pegar o ônibus de dez e meia da manhã, mas acabei mudando de ideia, meio por acaso, e peguei o meio dia e meia. Foi melhor assim do que enfrentar as cabulosas sete horas e meia de viagem com o estômago sem almoço, porque a única parada, em Resende, não deu tempo para comer o suficiente (meros vinte minutos), mas mesmo que desse, eu fiquei com dó de comer pratos preparados com ouro.