Minha recente apreciação, ou melhor, “depreciação”, da obra do tal Raphael Draccon atraiu pelo menos uma contestação. Segundo certo comentarista no blog LitFanBR, que reproduzira minha postagem, a crítica que fiz à obra de Draccon teria sido motivada pela “inveja”, entre outras considerações.
Este post não pretende desqualificar os citados comentários, mas apenas esclarecer alguns pontos levantados, em alguns casos até admitindo a validade do que o comentador pontuou.
Sim, você ESTÁ com inveja dele. Seja por ele ganhar dinheiro ou pelos livros dele serem lidos aos montes.
“Inveja” é uma palavra complicada. Talvez porque, em nossa cultura cristã, ela seja tida como algo sempre, necessariamente, negativo. Um pecado, uma falha de caráter, um defeito argumentativo. Disto resulta que ao detectar “inveja” em uma pessoa, isto supostamente desqualificaria os seus argumentos. Argumentos fruto da inveja não são e nem poderiam ser justos.
Parece-me que este raciocínio é falacioso. Gosto de pensar que é sempre bom separar bem separado o autor e sua obra, a pessoa e as suas ideias. Assim não sendo, corremos o risco de atingir o autor quando atacamos a obra ou, pior, atacar o autor querendo atingir a obra e não o conseguir. Se separamos corretamente as duas coisas, não há motivo para pensar que uma pessoa movida pela inveja esteja errada desde o princípio. Sim, a inveja é má conselheira e pode nos induzir a interpretar as coisas errado. Mas nesse caso o mal da inveja está no fruto (argumento). Se o fruto está podre, então que seja atirado fora. Mas e se o crítico, mesmo movido pela inveja, consegue fazer uma crítica correta? Por que desqualificar o que foi dito? Somente pela influência da inveja?
A inveja é apenas um entre os sentimentos humanos. Tudo o que os seres humanos fazem é movido por seus sentimentos. Alguns são bons, outros são ruins e, na maioria dos casos, nós que vemos ou lemos o que os seres humanos fazem ou escrevem não temos nenhum indício seguro de quais sentimentos motivaram cada coisa. Atribuir sentimentos ao outro é sempre um jogo de adivinhação. Podemos supor que um ato é fruto do amor, mas pode ser por interesse. Podemos enxergar altruísmo onde só existe o instinto de autopreservação. Talvez pensemos que um ato foi egoísta, mas na prática o ato pode ter tido uma motivação educativa. As pessoas não são transparentes a ponto de podermos dizer “isto é amor”, “isto é inveja” ou “isto é sincero”. Desta precariedade resulta uma necessidade: se não podemos julgar as intenções, devemos julgar os atos. Como diz o ditado, “de boas intenções o inferno está cheio”, como dizia Jesus Cristo, “conhecereis a árvore pelo fruto”.
Então peço a quem leu a crítica original que desconsidere a possível motivação de “inveja” e analise racionalmente o que foi dito. Faz sentido? Então a “inveja” é irrelevante. Não faz sentido? Então não é relevante mesmo que a motivação fosse a mais imaculada de influências pecaminosas.
Ainda vou aqui considerar um pouco se a inveja é realmente algo tão negativo. A consideração popular é a de que existem dois tipos de “inveja”, construtiva e destrutiva. A inveja construtiva é a que nos impele a emular as pessoas que invejamos, enquanto a destrutiva é a que nos faz querer derrubar do pedestal as pessoas que admiramos. “Inveja” construtiva costuma ser chamada de idolatria, admiração, etc. “Inveja” destrutiva é que é a inveja mesmo.
Num primeiro momento pode parecer muito válido distinguir assim. Mas será que necessariamente uma é negativa e a outra, positiva? Penso que é tão válido procurar destruir uma pessoa que invejamos quando procurar igualá-la. Tudo depende do foco da inveja. Se eu invejo a qualidade do trabalho de alguém e procuro fazer igual, isto é muito construtivo e positivo, ao mesmo tempo em que é destrutivo e negativo se seu, na mesma situação, procurasse abater quem está acima. Mas e se eu invejo um autor pelo seu sucesso mas o abomino por sua qualidade literária, o que há de negativo em combater o primeiro ressaltando a falta da segunda?
Acredito que em tudo na vida somos convidados a tomar posições. Às vezes isso envolve agir com certa antipatia, tentar destruir aquilo com que não concordamos. O mundo não é feito somente de flores. E Raphael Draccon não merece, de forma alguma, ser tratado como uma vestal. Ele mesmo admitiu que boicota autores que fazem críticas, então ele mesmo destrói a obra de pessoas que o incomodam ou que ele pensa que podem vir a incomodar. Destrói ou tenta destruir, não importa, o efeito é igual. Então se eu vejo alguém que se dá bem fazendo algo com que eu não concordo, é meu direito atacar essa situação, procurando fazer com que os outros vejam o que eu vejo. Não se trata de uma inveja destrutiva, mas de uma atitude diante de uma situação que me incomoda. O mundo seria um lugar melhor se as pessoas tomassem mais atitudes contra o que lhes incomoda.
Eu não estou criticando Draccon porque invejo o dinheiro, o poder e o puxa-saquismo de que ele desfruta. Eu até invejo isso, em parte, mas o motivo da crítica é eu sentir que ele não merece isso. Porque eu o considero um impostor literário, eu não acho certo que ele desfrute do tipo de sucesso que um autor deveria ter. Não é que eu o ache mau escritor, eu simplesmente acho que ele é um produto de marketing que não chega ao nível de ser “mau escritor”. Ele não está onde está por causa de divergências de estilo, ele e eu não somos autores de nichos diferentes, ou de estilos diferentes, ou de talentos diferentes. Ele e eu não somos a mesma coisa. Negar-me, sob a acusação de invejoso, o direito de criticar Draccon é negar a todo mundo o direito de criticar aquilo com que não concorda.
O tipo de crítica que você faz é vazia, mesquinha. Apontar que o Prólogo tem que ser isso ou aquilo, atesta que sua cultura literária é rasa como um pires. Dizer que o livro dele é ruim porque ele fala linche ao invés de lich ou que o rei da terra que ele criou usa bastão ao invés de cetro é no mínimo babaquice.
Pode até ser babaquice aos olhos de alguns, mas os fatos citados são fortes indícios de que Draccon é um escritor que não lê. Este é um tipo de criatura que se prolifera atualmente no país. Muita gente quer escrever, mas não quer ler. Suas referências vêm do cinema, das séries de televisão, das novelas e de raros livros lidos. O próprio Draccon cita como suas maiores influências os seriados japoneses tokusatsu, os videogames e os jogos de RPG. Como queremos desenvolver a literatura nacional se nem nós, os autores, estamos dispostos a lê-la? Erros de ortografia e pobreza de vocabulário são sintomas de uma desconexão da história literária do português.
Este desenraizamento do autor é nocivo para a literatura nacional, e nem todo o fandom reunido em torno desses autores desmente esse efeito deletério. Raphael Draccon é um entre muitos autores nacionais cuja obra é um acessório, um penduricalho da literatura estrangeira. Sua obra cita e complementa os best-sellers que vêm de fora. Remete a uma cultura alheia. O lugar que estes autores ocupam é um lugar “cedido” pelo mercado, pois serve de linha auxiliar da divulgação dos produtos culturais importados. Esta relação biunívoca entre uma parte da LitFan nacional e a indústria estrangeira do entretenimento é um veneno para a cultura nacional e autores como Draccon se locupletam às custas disso, adquiriram poder graças a isso, exercem esse poder para sufocar quem está fora ou contra isso.
Se querem uma Literatura Fantástica Brasileira que preste, façam vocês também críticas que prestem.
O problema está justamente em definir qual seria a “crítica que presta”. É impossível abordar as obras de Draccon sem detectar a sua constrangedora falta de cultura, o seu precário domínio do idioma e a impostura generalizada que é o seu trabalho. Uma “crítica que presta” teria de abordar somente obras que prestam. Se definirmos uma “crítica que presta” como uma que pesa fatores positivos e negativos, então teríamos que criticar somente obras que tenham fatores positivos. E o que há de literariamente positivo em Raphael Draccon? Como disse, há tão pouco ali que eu fiquei com a impressão, depois de lê-lo, que Paulo Coelho é um escritor bom. Apesar da falta de qualidade da prosa coelhiana, é verdade que ele tem referências culturais mais profundas do que as dracconianas (algumas bastante eruditas, como Aleister Crowley, e outras de qualidade e riqueza indiscutíveis, como As Mil e Uma Noites). Boa parte dos problemas da obra de Paulo Coelho poderiam ser facilmente atribuídos a dislexia do autor e falta de revisão por parte da editora (não esqueçamos que as primeiras obras dele foram publicadas “na marra”, às suas custas, em uma época em que as editoras não o publicariam). Se Paulo Coelho admitisse revisão e coaching de seu trabalho, teria potencial de escrever coisas muito melhores. Chego a dizer que Paulo tem um talento mal aproveitado, porque ele é bastante razoável para tecer tramas e organizar a ação.
Ninguém tem que idolatrar o Dracoon porque ele é vendido, agora se você se propôs a criticá-lo, leia e faça uma crítica razoável.
Acredito que não é necessário ler um livro inteiro para ter o direito de criticá-lo. Essa é uma condição desonesta para exigirmos do crítico. Especialmente no caso de autores que fazem livros imensos. Escrever obras imensas seria, assim, uma forma fácil de evitar críticas desfavoráveis: como ninguém tolera ler um calhamaço de duas mil páginas que não seja bom, o impostor verborrágico estaria a salvo de ser malhado.
Como alguém já disse num debate do Orkut, a qualidade é sempre relativamente superficial, mas a ruindade vai até o osso. A leitura de uma obra longa, mas de qualidade, sempre revelará imperfeições, que o bom crítico deve relativizar, mas uma obra ruim não justifica pelas suas minoritárias qualidades a torrente de ruindade que jorra quase o tempo todo. Então é aceitável e justo julgar uma obra longa a partir de um punhado de páginas. Aceito que façam isso com a minha obra, por exemplo. O autor não tem o direito de esperar que o leitor tenha a paciência de ler sua obra até a página 170 para começar a encontrar as qualidades, muito menos que o crítico tenha.
Não farei críticas “razoáveis”, mas críticas honestas. Se o livro é ruim até a página vinte, então ele é ruim de forma absoluta. A cada página o autor tem a obrigação de convencer o leitor a conhecer a seguinte.