Setembro de 2014 marca o fim de um momento na história da internet, e da cultura pop como um todo: desaparece o Orkut, a primeira das redes sociais a ganhar tração e estabelecer padrões de comportamento on-line. Com o seu fim o Google está enterrando para sempre, de forma irreparável, uma série de momentos, criações e esperanças de milhões de pessoas que através dele conheceram amigos, estabeleceram contatos profissionais ou simplesmente aprenderam a se divertir de um jeito novo.
É triste que isto aconteça, que um verdadeiro mundo de experiências se desmaterialize assim, mas talvez seja um fato educativo para todos nós que o vivemos: quando o Orkut se for, ele talvez nos ensine uma maneira de manter resguardadas as nossas lembranças e as nossas amizades. Se isto acontecer, terá sido uma lição aproveitada. Embora eu tema que não aconteça.
Antes do Orkut a internet era uma experiência difícil para os usuários. Havia milhares de portais de entrada, cada provedor de internet queria ter o seu, e o usuário contemplava o oceano de informação como alguém que chega à beira da praia e tenta adivinhar que peixes nadarão no oceano. O conceito novo de “rede social” subverte isto: embora tenhamos pensado sempre que a rede social organiza relacionamentos, o fato mais impactante é que ela organiza a experiência do navegador do oceano de informações. É isto que a tornou revolucionária, e não a sua capacidade de agregar pessoas conhecidas. O “social” da rede logo ensejou novas categorias de relacionamentos, deixando claro que as meras relações de conhecimento, inicialmente pensadas pelos seus desenvolvedores, eram muito limitantes.
É verdade que o Orkut foi criado para testar a teoria dos seis graus de separação, mas ele permitiu o florescimento do personagem falso (“fake”), que já existia desde os tempos dos fóruns de internet, e isso subverteu a lógica dos seis graus.
O Orkut representou, para seus usuários, uma forma rápida e eficaz de encontrar pessoas com gostos afins (não com parentescos ou semelhanças) e compartilhar nas “comunidades” criadas para reunir tais tribos virtuais os conteúdos específicos de suas áreas de interesse ou atuação. Não mais turistas indefesos contemplando um oceano, mas utilizadores capazes de encontrar o que queriam nos muitos compartimentos organizados oferecidos através das comunidades.
No começo pareceu uma coisa boa. A organização de algo originariamente caótico sempre nos parece um progresso. Mas as redes sociais, das quais o Orkut foi o pioneiro, produziram logo uma transformação profunda na maneira como os seres humanos não só se relacionam entre si como também na forma de interagirem com a informação. Esta mudança não foi neutra.
O Orkut, por ser pioneiro e ainda um tanto ingênuo, ofereceu ferramentas poderosas para a organização do conteúdo pelos próprios usuários. “Moderadores” de comunidades podiam atuar em conjunto para estabelecer regras e construir um cenário pulsante de criatividade e cultura. Algumas comunidades se tornaram lendárias pela sua capacidade de criar e produzir conteúdo de qualidade, seja no aspecto jornalístico (“Fórmula 1 Brasil”), seja na literatura (“Novos Escritores do Brasil”), na educação científica (“Evolucionismo versus Criacionismo”), no debate religioso (“Contradições da Bíblia”), na filosofia (“Ciência e Filosofia”, “Céticos S.A.”, “Sociedade da Terra Redonda”), no humorismo (“Piores Perfis do Orkut”, “Traumas de Adolescência”) ou até grupos de autoajuda. Havia, claro, os grupos sem sentido, que prefiro não citar, e grupos irrelevantes, mas o que mais marcou foram os grupos de qualidade, onde, devido às características que o Orkut herdou dos fóruns e dos BBS, era possível ter discussões, arquivar conteúdo e montar grandes debates. Sob esse aspecto o Orkut foi imensamente criativo, e deve ter produzido toda uma geração de humoristas, jornalistas, escritores e pensadores. Eu mesmo me julgo um deles, porque, embora eu já tivesse mais de trinta ao criar meu perfil, desenvolvi imensamente minha personalidade e minha capacidade argumentativa e de escrita participando de debates e desafios propostos nas comunidades.
Esta é a parte do Orkut que vai deixar saudades, mas os que viveram aquela fase sabem que este mundo róseo e azul já não existia há algum tempo. Faz pelo menos dois anos que o Orkut se transformou em um mero simulacro do que fora, cadáver adiado de si mesmo.
Seus sucessores não mantiveram as características que o tornaram criativo, preferiram buscar caminhos de maior rentabilidade e de maior poder, o que se fez, claro, removendo do usuário, mesmo os “administradores”, o poder de organizar e manusear o conteúdo. Nas redes sociais pós-Orkut o usuário é passivo, sua capacidade de controlar o que vê e de difundir o que produz é muito limitada. Talvez somente no Vkontakte um pouco disso esteja preservador, mas ainda é difícil dizer porque quase ninguém que importa está lá.
A parte do Orkut que sempre foi preocupante, mas que a gente nunca pensava em denunciar, envolve mudanças sutis para pior.
- As pessoas deixaram de se preocupar com o “site”, pois a porta de entrada passou a ser a rede social. Já nos primórdios do Orkut se percebia que as pessoas não mais se lembravam de seus links favoritos, mas coletavam as informações de uma maneira descontrada na própria rede. O Orkut substituía a navegação. As pessoas selecionavam um conjunto de comunidades a seu gosto e experimentavam somente o que estas comunidades filtravam, através de seus membros atuantes e de seus moderadores.
- A produção de conteúdo passou a ocorrer dentro da própria rede, de forma isolada em relação aos endereços externos (a “blogosfera”, por exemplo, começou a perder espaço). Uma das primeiras vítimas foram os fóruns de debates, que em pouco tempo ficaram às moscas e hoje estão francamente a caminho da extinção. Esta mudança foi um passo natural, se pensarmos que havia uma diferença sutil de qualidade de conteúdo entre postar a hiperligação para um conteúdo invisível ou copiar o conteúdo no tópico. O link logo se tornou um mero detalhe, uma deferência, uma questão de educação, para agradecer ao criador do conteúdo originário. Mas tudo isso significa que se tornou supérfluo e logo o próprio Orkut começa a ter conteúdo que não vinha de fora, mas que ali mesmo anscia.
- O isolamento do resto da internet concentrou o poder de influência e tornou os sites dependentes das migalhas de conteúdos originários de “dentro” do cercadinho das redes sociais. Pesquisas mostram que, atualmente, menos de 1% do tráfego de um blog é referido por redes sociais (todas elas, em conjunto), mas, ao mesmo tempo, sem, participar de uma rede social os sites e blogs não têm visibilidade e não atraem visitantes. No caso do Orkut o poder de isolamento ainda era relativo porque a maioria dos internautas tinha próximo o costume de ainda buscar suas referências externas. Mas este processo se completou atualmente, e já havia quem falasse em morte da blogosfera desde 2008.
- Isto obrigou a mídia tradicional e até os sites independentes a criarem perfis nas redes sociais, acelerando a migração do processo de produção e distribuição de conteúdo para dentro do controle de umas poucas empresas. Então o florescimento da rede social significa o surgimento de um tipo de oligopólio da informação, com a maior parte do conteúdo sendo produzido e distribuído através de um poucos players do mercado (atualmente Facebook, Twitter e Google+). Os governos logo perceberam a utilidade destas redes e passaram a utilizá-las como meio de coleta e organização de dados sobre seus cidadãos, em alguns cados chegando às raias da espionagem. As revelações feitas por Edward Snowden sobre o acesso irrestrito que a NSA tinha à redes sociais ajudaram a cimentar a ideia de que toda liberdade existente nelas é cuidadosamente controlada e vigiada pelos olhos atentos do Grande Irmão. Assim, a utilização de redes sociais para organizar protestos políticos não deve ser vista como algo revolucinário, mas como um instrumento dos interesses dos governos que controlem estas redes. Faz sentido, portanto, que o governo da Rússia tenha se apressado a obter o controle do Vkontakte, antes que ele “fugisse” do país, como já havia feito o Yandex.
- As empresas controladoras das principais redes sociais (atualmente Facebook, Twitter e Google) governam o fluxo de informações segundo seus próprios critérios, nem sempre claros. É bem verdade que este fluxo não existiria sem as redes sociais, mas ele não aumenta a difusão democrática de informação: em vez disso dilapida outros meios de produção, armazenamento e difusão de conteúdo. E no fim de contas aqui estamos nós, dependentes dos serviços gratuitos e discricionários de uma empresa privada para exercermos, supostamente, nossa liberdade de expressão. Ocorre que, sendo este um serviço provido por uma companhia comercial, é controverso se os nossos direitos são tão extensos quanto seriam se estívessemos em um serviço público. Não só pelos possíveis limites que os serviços em si oferecem, mas pelas consequencias de quando estes possam ser interrompidos.
- E a interrupção se torna o grande problema. Ela pode ser um ato discricionário e violento, como quando Sérgio Sinki me expulsou da “Novos Escritores do Brasil” deletando em um apertar de botão todas as minhas contribuições àquela comunidade, ou como quando o Facebook desativa perfis ou remove conteúdos por “violações” de suas “regras de comunidade”, ou pode ser algo mais escatológico e sutil, como quando a empresa decide mudar o tipo de serviço ou acabar com ele. Em ambos os casos, as letras elétricas se desmancham no ar e toda uma fase da vida de um cidadão é destinada ao buraco da memória.
Enquanto hoje lamentamos o desaparecimento do Orkut, mas não de todos os seus fluidos e miasmas, convido você, amigo leitor, orkuteiro ou não, a se perguntar que tipo de restos poderão ser estudados pelos históriadores do futuro quando tentarem compreender a nossa cultura. Cada vez mais a informação se desloca da celulose para o silício, da tinta para a eletricidade. Isso quer dizer que a informação com que lidamos se tornou imensamente precária e, quando a transição estiver completa, se ocorrrer uma falha universal da tecnologia subjacente à produção e ao armazenamento desse conteúdo, corremos o risco de sermos subitamente arremessados de volta à Idade Média num piscar de olhos.
Cazuza estava certo, esse é um futuro perigoso, de grana e de dor.