Letras Elétricas
Textões e ficções. Tretas e caretas. Histórias e tramóias.
by J. G. Gouvêa

O Culto da Carga na Literatura Nacional

Publicado em: 12/10/2014

Correndo o risco de perder mais uns dois ou três dos doze ou treze leitores que me restam aqui nesse blog sonambúlico, inicio mais uma treta, com o objetivo óbvio de ofender as pessoas que gostam de mim e espantar quem ainda se interessa pelo que eu escrevo. Ou para fazer as pessoas de mente aberta terem no que pensar nesse domingão, enquanto eu vou visitar família e amigos em Cataguases. Quem for copiar para seu blog sem me dar crédito, comece no parágrafo seguinte.

Diante da decadência evidente da literatura nacional, uma entre outras decadências de nossa paisagem cultural, que se rarefaz enquanto se difunde, Diante do estado de sítio em que vive a nossa cultura, afetando o desenvolvimento de uma identidade nacional e afastando as novas gerações da continuidade com a tradição cultural brasileira, percebe-se nos em boa parte dos praticantes e leitores de tal literatura dos nichos mais populares da literatura pátria uma atitude de sacerdotes do culto da carga.

Para que você tenha uma ideia aproximada da gravidade da ofensa que eu estou lançando contra você e contra os seus ídolos eu vou explicar o que é o tal “culto da carga”, exagerando o que me convém e simplificando o resto.

Nas ilhas da Melanésia (principalmente Vanuatu) existe uma religião inteiramente baseada em uma mitologia recente, criada durante a Segunda Guerra Mundial. Aqueles povos, que ainda viviam em um estágio cultural muito primitivo, subitamente se viram no meio de um conflito de grandes proporções entre dois povos muito diferentes, os japoneses e os americanos.

É fácil imaginar como a visão da guerra afetou sua cultura. Para eles, uns e outros não se diferenciavam de deuses. Os melanésios contemplaram o desenrolar do conflito mais ou menos como um viking teria contemplado uma batalha dos deuses de Asgard contra os gigantes do frio ou como um antigo heleno teria contemplado a Titanomaquia. E é claro que eles não entenderam coisa alguma: línguas estrangeiras, costumes estrangeiros, tudo tão estranho. Armas poderosas, meios incríveis de comunicação. Como disse Clarke: “toda tecnologia suficientemente mais avançada não se distingue de magia”.

A guerra coincidiu com um período de crise alimentar nas ilhas, causada por tufões e secas. Mas os americanos, de forma muito cavalheiresca (o que é incomum em uma guerra e especialmente incomum entre os americanos) dividiram com os nativos os alimentos que recebiam por via aérea.

Quando a guerra acabou os melanésios se viram abandonados pelos deuses vivos com quem haviam convivido. E novamente tiveram que cultivar seu sustento a partir da própria terra, sujeitos ao clima e ao azar. Mas a lembrança dos feitos fantásticos que haviam presenciado se preservou para as gerações futuras, o que fez com que, gradualmente, este povo desenvolvesse a ideia de que os mesmos feitos poderiam ser repetidos se eles mesmos imitassem o que os americanos faziam.

Em um momento crucial, os melanésios perceberam, talvez por influência do colonialismo e da exploração a que foram depois submetidos, que os americanos não eram exatamente bonzinhos. Porém, havia algum tipo de divindade que lhes enviava preciosas cargas do além quando eles repetiam certos gestos como falar ao rádio e sinalizar para aviões que passavam. Os melanésios, não detendo rádios e nem compreendendo a tecnologia da aviação, construíram réplicas em bambu e madeira, improvisaram aeroportos iluminados por tochas, coseram para si imitações de uniformes e passaram a postar-se como comandantes das forças armadas ianques, fingindo falar ao microfone, marchando em determinados dias, fazendo, enfim, tudo o que não fosse estritamente militar, com o objetivo de convencer os misteriosos deuses a enviaram a preciosa carga.

O Exército de John Frum

Boa parte dos jovens autores de nossa literatura age como os cultuadores da carga na Melanésia. Eles viram o que os estrangeiros obtiveram em termos de sucesso internacional (a carga) e, como não compreendem o que eles realmente fizeram para obtê-lo, resolveram imitar os aspectos exteriores a fim de conquistarem o favor dos deuses e receber a carga.

Assim, nossos autores confeccionam para si identidades postiças com pseudônimos de sonoridade estrangeira, ambientam suas histórias em outros países de forma servil (e não para simplesmente variar o cenário) e nomeiam todos os seus personagens como se fossem personagens de um seriado da moda. Acreditam que envergando esse falso uniforme militar e fingindo falar em uma imitação em bambu de um telefone real, conseguirão tornar-se best-sellers internacionais.

Tal como os deuses não davam a carga aos melanésios, mas a deram aos americanos, acreditam esses jovens que o sucesso não foi dado ao autor brasileiro por ser brasileiro. Tal como os melanésios fingem ser americanos para enganar os deuses e receberem a carga, os brasileiros fingem ser americanos para enganar o sucesso e venderem livros.

Talvez a principal diferença seja que os melanésios jamais receberam qualquer carga, pelo menos não durante o tempo em que sua religião foi praticada sem o conhecimento do mundo exterior (e a carga que receberam depois não é exatamente fruto de seus rituais, mas consequencia do desenvolvimento do turismo local, que, olha só, foi justamente exacerbado pelas cerimônias toscas do culto da carga). Mas os autores brasileiros ocasionalmente a recebem, ainda que limitados ao território nacional.

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