Há algum tempo eu fui convidado pelo blog “Revolução E-Book” a escrever uma série de artigos sobre a minha opinião sobre a referida Revolução. O resultado foi uma série de artigos chamada “Carta Aberta ao Senhor Motorista do Tanque”, na qual eu me coloquei na posição do chinês que tentou impedir a coluna de tanques de avançar para a Praça da Paz Celestial, em 1989. Tal como ele, eu não tenho muita ideia do que estou fazendo, sei que não vai adiantar e provavelmente estou me ferrando. Apenas sei que os tanques não me parecem legais e não me agrada só ficar olhando enquanto passam.
Embora muita coisa tenha ocorrido nos últimos três anos, não retiro muitas vírgulas do que disse (algumas sempre se tira ou põe na revisão). Continuo acreditando que o tipo de revolução representado pela migração da literatura para a nuvem não é apenas revolucionário, mas é também possivelmente prejudicial ao que hoje chamamos de literatura. Pode ser que no futuro isto que assim chamamos não exista mais. E a outra coisa que existirá em seguida será tão diferente que não se terá mais sequência do que se fazia antes. Algo como a diferença entre um ilustrador que usa um programa de pintura digital e um pintor renascentista com suas tintas e pincéis.
Uma das revoluções assim envolvidas é a revolução da autoria. A ideia de “autor” como um indivíduo que cria uma obra literária parece que entrará em extinção. O que no passado se fazia por exceção, tende a se tornar a regra. Inicia-se a proletarização da literatura, talvez última das artes que resistia ao capitalismo.
Antes de continuar, para benefício de quem não tem conhecimentos sobre o processo de formação da Sociedade Industrial e também de quem não leu ou não quer ler meu artigo anteriormente citado, devo explicar de que se trata tal proletarização. E todas as citações neste texto (salvo indicação divergente) foram extraídas no meu artigo acima citado.
Entende-se como tal a transição da economia feudal para a economia capitalista através da criação da produção em massa de bens de consumo. Isto se deu retirando o controle da produção dos artesãos (produção de subsistência) e manufatores (produção em pequena escala) e transferindo-o para as fábricas, onde os antigos artesãos e manufatores se transformaram em operários. O processo envolve a alienação, que é a perda do controle do trabalhador sobre o produto final (um operário de indústria não necessariamente sabe produzir, sozinho, o que ali se produz) e a proletarização, que é a desvalorização do trabalhador através da perda de sua individualidade. Por meio da alienação o trabalhador se vê reduzido a operador de uma máquina (donde “operário”), da qual depende para produzir. Na prática ele somente é capaz de produzir enquanto no recinto da fábrica, onde está sob o controle do patrão. Por meio da proletarização o trabalhador se torna apenas uma peça descartável. Uma vez que a operação da máquina não requer conhecimento especializado, ele tem menos valor que ela. A longo prazo este processo destrói os saberes tradicionais (artesanato), cria produtos homogeneizados de baixo valor em comparação com a manufatura, e prolifera miséria, através do achatamento salarial. Este foi o modelo econômico vigente entre meados do século XVIII e o início do século XX. Estas eram as fábricas onde as greves por condições humanas de trabalho eram reprimidas com a mesma violência do que nas rebeliões em presídios.
O que não se diz é que o ambiente em que a técnica adquire poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a própria sociedade. Hoje, a racionalidade técnica é a racionalidade do próprio domínio (Horkheimer-Adorno, 1947).
Podemos resumir o conceito em uma frase: “a proletarização é um processo através do qual o ser humano deixa de ser sujeito da economia e passa a ser um mero objeto.”
O mundo já foi um lugar mais simples para os escritores. A chance de ser publicado era ínfima, claro, mas o mundo era mais livre, pois cada um era dono do próprio caderno e da própria máquina de escrever.
As facilidades de comunicação, o avanço dos programas de edição e os formatos digitais de conteúdo textual permitiram que se iniciasse, em algum momento, uma transição semelhante na literatura. Agora também ela se “beneficia” da produção em larga escala de obras homogeneizadas, que podem ser vendidas a baixo preço individual devido à produção em massa. Por um longo tempo existiu um mercado literário de massas, e os escritores sempre estiveram felizes em usufruir dele, pois através de tal sistema os “eleitos” conseguem fama e muito dinheiro (embora nem sempre quando querem ou como queriam). Ocorre que, da mesma forma que não fazia sentido reunir em um galpão quarenta sapateiros para que ali fabricassem suas peças, não faz sentido, economicamente, contratar centenas de autores para que cada um escreva a seu modo.
Era um mundo excludente, que só funcionava para poucos, mas ninguém acha a loteria injusta só porque os vencedores são raros.
Marshall McLuhan, que eu nunca me canso de citar, criou o revolucionário conceito de que “o meio é a mensagem”, ao perceber que o desenvolvimento de novas tecnologias não era mero veículo para a informação, mas conformava (ou deformava?) a mensagem em si. Uma peça de teatro pode ser filmada, mas logo temos o surgimento do filme cinematográfico, que não é a mesma coisa que uma peça filmada. Em seguida surge a televisão, e ela não é apenas um filme transmitido eletromagneticamente. E a literatura de massas, ao empregar a tecnologia informática, não é apenas uma difusão em larga escala do que os autores escrevem.
Porém, quando os marketólogos do mercado põem a mão em algo, eles procuram criar um produto a partir de uma « commodity ». O « livro eletrônico » etiquetado como « e-book » só traz de novo o velho anseio de manter sob controle o conteúdo que a internet, anárquica por natureza, ameaçava arrebentar.
Surgem novas estruturas narrativas, somente possíveis por causa da tecnologia. A técnica e a estética são influenciadas pela cultura digital lá fora, surgem novas formas de trabalho com o texto (copiar e colar, deletar erros) e novas relações entre autores, revisores, editores, ghost-writers e outros.
Estas novidades não apenas modificaram, e estão modificando, a literatura, mas influenciam também a forma como os leitores a leem, a maneira como os escritores aspirantes pretendem escrever e se inserir, a divulgação e o foco que se dá às obras assim produzidas.
Um desses conceitos é a ideia de que o autor é apenas um nome associado a um produto. Quantos livros famosos não foram escritos por autores ocultos (“ghost-writers”) que receberam dinheiro (sabe-se lá quanto) para emprestarem sua capacidade a um autor mais conhecido. No Brasil temos o famoso caso do “Manual Prático de Vampirismo”, que Toninho Buda escreveu para Paulo Coelho (que devia um livro à editora). Este episódio se tornou conhecido por causa do calote de Coelho em Buda e pelo processo movido pelo segundo, que motivou que a obra fosse, por ordem de Coelho, suprimida de todos os catálogos a ponto de não se poder mais achá-la.
Existe boatos de muitos outros casos. Nunca se saberá se todas as obras deste autor ou daquele foram mesmo escritas por ele. Sou eu mesmo que estou digitando este texto ou será que paguei a alguém para escrever para mim? Que necessidade há de se fazer uma literatura autoral? No fundo, como Orwell predisse em “1984”, a função do texto é apenas transmitir uma impressão (vaga, obrigatoriamente) ou instilar um estado de espírito (mas o viés capitalista que Orwell não predisse acrescenta uma segunda função: a de ser produto). Se a função da obra é tão limitada, a ideia de orgulho sobre ela se torna obsoleta. E a dor da alienação desaparece: você conhece alguém que tenha orgulho de fabricar os melhores sapatos ou que ostente sua habilidade para costurar? No futuro o mesmo processo fará com que ninguém pense em textos (palavras que sequer estarão “no papel”) como objeto de algum tipo de orgulho ou satisfação. A alienação completa.
O avanço deste processo é o que explica que um autor aspirante confesse que se “tivesse dinheiro, também pagaria” para alguém produzir para si o texto que ele imaginou, mas não teve tempo de realizar. Ou que acredite que “o que vale neste caso é a ideia e não quem digita a ideia.” Leu a citação de Horkheimer e Adorno lá em cima? Consegue supor aonde isto nos leva? Leva-nos ao ponto em que os detentores de capital (“money”, grana, bufunfa) pagarão a não-detentores para que utilizem suas habilidades e produzirem para si. Assim como o operário de uma fábrica produz bens que são rotulados pela fábrica, e não por si, o escritor “pago” tampouco rotula o que escreve: esta prerrogativa é detida por quem possui o poder econômico. O autor se tornou aqui um operário, alienado de sua obra pois, caso tal sistema se implante plenamente, a publicação só estará ao alcance dos detentores do poder econômico. Afinal, você que aprendeu a costurar não pode sair por aí fazendo jeans e vendendo pura e simplesmente. Há toda uma estrutura econômica que você tem que construir, e ela se baseia em ter dinheiro (capital inicial). Nesta literatura mercantilizada, quem não tiver dinheiro para pagar para ser publicado não o será. O autor “pago” não terá autonomia para se publicar, tal como o operário da fábrica de sapatos nunca criará uma grife sua e exportará para a Rússia.
Já são variados os indícios de que uma parte significativa dos jovens de hoje já enxerga essa dicotomia autor e escritor, que espelha, ridiculamente, o antigo ideal grego que opunha os misteres intelectuais e o trabalho braçal. “Esse cara é um idealizador. Quem escreve pra ele é escritor.” Para esses garotos de hoje, o mérito está em ter “ideias” e não em realizá-las, assim como para o eupátrida ateniense era ofensiva a ideia de ter que trabalhar para o próprio sustento. A separação entre autoria e escrita, ao espelhar este antigo ideal grego e ao se basear numa analogia com o processo de alienação ocorrido durante a Revolução industrial, se torna, assim, uma justificação da dominação econômica de uns sobre outros, aquilo que Marx chamou de “a exploração do homem pelo homem” e que é a essência do capitalismo.
A ideia de que “autor é quem cria e assina” contribui, portanto, para transformar a literatura em um atividade econômica qualquer, removendo dela todo aspecto artístico. Assim como já não há arte na confecção de roupas, nem na fabricação de sapatos, nem na fundição de ferramentas, não a haverá na “fabricação” de textos. E a individualidade do autor, esta dura conquista da modernidade, se dissolverá, substituída pela individualidade de quem paga, assim como a fábrica leva o nome de quem a funda, não de quem nela trabalha.
O novo não é sempre bom. Certas coisas horríveis que aconteceram no passado foram novidades quando apareceram: o amianto, a sífilis, a peste negra, os aditivos à base de chumbo para a gasolina. Precisamos ser críticos em relação ao novo, talvez mais até do que em relação ao velho. Ser profeta do passado é muito fácil: esticar um longo dedo para os erros de nossos pais e avós é algo que não custa muita ousadia, pois os resultados, muitas vezes, são conhecidos. Difícil é ser cético em relação ao canto da sereia do futuro. Todos temos a ingenuidade de crer que o nosso futuro é a redenção de todos os nossos pecados. Mas o negócio do futuro é ser perigoso.
Para os que não se ajustem a este sistema, existe a possibilidade de publicação independente, o que é, da parte do establishment, uma forma educada de dizer que “a porta da rua é serventia da casa”, ou, como na letra do Rush: “conforme-se ou será deixado de lado.”
O grande problema do acréscimo de tantas mãos ao processo de criação é que algumas destas vem com tesouras para cortar aquilo que não cabe nos limites do sistema.