Escrever não é fácil. Se fosse fácil, redação não seria o terror dos estudantes. E não é que a língua portuguesa seja mais difícil que as demais (nada é fácil para quem não domina), mas, sim, que o domínio funcional da língua não implica em domínio criativo: este é o mais alto dos níveis de proficiência em qualquer idioma, fácil ou difícil.
Portanto, fazer literatura, embora pareça “fácil” ao olhar leigo, é tão difícil quanto pintar, consertar automóveis ou dançar balé: todas estas atividades requerem formação, treinamento, força de vontade e uma dose variável de talento inato (nós não somos todos iguais, por mais que esta noção de individualidade seja desagradável a certos pedagogos).
Quando me refiro a tal dificuldade, não quero me remeter à dificuldade de se produzir obras primas — isto não é nem necessário discutir, e ninguém começa a pintar sonhando que vai se tornar um novo Degas. A genialidade não é intencional: aquilo que intencionalmente se pretende como genialidade possui um nome óbvio: “pretensão”). O tipo de dificuldade a que me refiro é a mera dificuldade de produzir um texto literário coeso.
Por “coesão” pode-se entender muita coisa, mas eu estou sendo modesto: quero dizer apenas a qualidade que o texto deve possuir, minimamente, para não ser apenas uma composição escolar do ensino fundamental. Um texto, para ser chamado de literário precisa se realizar até o fim. É isso que separa os homens dos meninos e as mulheres das meninas em termos literários: é a passagem da vaga ideia rascunhada em uma folha ou duas para a produção de algo plenamente desenvolvido.
Muitos jovens autores com quem me deparo acreditam que a dificuldade está na língua — e de fato muitos deles sofrem para utilizá-la, e a fazem sofrer — e até sonham com a ideia de escrever em inglês (os que sabem) para libertar-se das “amarras” de nosso idioma. Em geral eles não parecem ser capazes de dar o salto de qualidade, independente de que língua usem — o que só torna risível sua ideia de que seria mais fácil migrar literariamente para outro idioma, eles que mal se entendem com o português que mamaram das suas mães.
Refiro-me, claro, ao deserto de ideias que eles apresentam. Nossos jovens de hoje estão submetidos a um bombardeio de informação que nunca foi experimentado por nenhuma outra geração. Eles têm na ponta dos dedos mais dados que os mais informados filósofos do século XVIII tiveram em anos inteiros de suas vidas, e não fazem porra nenhuma com isso.
Dados desorganizados não valem nada. O valor está em transformar esta massa bruta em “conhecimento”, mas isto nem sempre acontece porque a juventude, apesar da imensa variedade de informações a que tem acesso, de fato vive uma limitação muito gritante de suas experiências. A informação que recebe é sempre “mais do mesmo”, pois chega sempre através de uma variedade exígua de meios: televisão, smartphones, computadores e outros aparatos eletrônicos de cunho predominantemente visual/auditivo. A informação a que têm acesso não têm cores naturais, não tem cheiro, não tem calor ou frio, não trepida e não contamina.
Este tipo de contato não é uma presença, não é uma experiência — e por não ser experiência, não traz conhecimento real, não marca e não educa. Continuam com aquele vazio, preenchido por coisas massivas, mas que não nutrem o pensamento.
Daí quando este jovem pretende escrever — porque leu um livro que lhe agradou, ou porque ouviu falar que gente que escreve também ganha fama e dinheiro — ele se depara com o fantasma da falta de assunto. Escrever o que, se não viveu muita coisa? Que sofrimentos e delícias o marcaram, o sufocaram, o fizeram querer expelir em palavras os tremores da alma? A pouca vida que teve, ele aprendeu desde cedo a considerar desprezível, pois a cultura de massas que consome está focada num ideal pasteurizado e estrangeiro (que sequer reflete de forma fiel o estrangeiro real e quente).
Talvez por isso tantos deles buscam que lhe digam o que deve ser escrito. Como não há nada que lhes remeta a uma lembrança forte, a algo que tenha um significado, fica-lhes o desconforto de observar o mundo como uma imensa massa de objetos cinzentos e de formas parecidas, entre os quais não sabem escolher.
A falta de vida plena está matando a alma de nossos garotos e garotas, e os jovens escritores que, conforme a sintaxe da vida, são jovens antes de escreverem, parecem cada vez mais ocos e cada vez têm menos o que dizer. Aquilo que pretendem escrever é um eco de opiniões alheias, terceirizadas, ou o decalque deformado de modelos importados, porque não conseguem criar ou interagir com algo propriamente seu e nosso.
Esta literatura sem ossos e sem alma está a se criar nas redes sociais, e já chegou às editoras, na forma de best-sellers atrozes que reciclam referências da cultura pop e se justificam na força da grana — posto que escrever é só mais uma atividade para se ganhar dinheiro (e de fato é pena que se ganhe tão pouco).