Esta semana a blogueira Silvia Pilz finalmente deixou de escrever sua coluna semanal — Zona de Desconforto — para o jornal O Globo, após uma intensa reação da internet a postagens suas em que ela supostamente ridicularizaria os pobres de uma forma humilhante. A queda do blog revela que muita coisa mudou na sociedade brasileira nos últimos anos, Silvia não havia percebido — e muito menos nossa imprensa oligárquica o percebera.
Nunca li o blog, não vou comentar o conteúdo dele em si, mas a forma como tudo aconteceu. O conteúdo do blogue foi difundido na internet, chegou às redes sociais, causou desconforto e espanto em muita gente, viralizou, tornou-se alvo de uma campanha negativa que afetou a imagem do jornal e por fim levou a escritora a perder seu espaço. Todo o processo envolve meios e atores que não existiam até recentemente.
Isso me alertou para a emblemática frase de Renato Aragão, que lamentou hoje sermos tão sensíveis e que antigamente as minorias (negros, judeus, gays etc.) não se ofendiam em ser alvo de piadas. Renato está preso a uma lógica de décadas atrás, mas ele tem mais de setenta anos, admirável é que Silvia, tão jovem, não tenha evoluído além do mesmo modelo mental dele.
O tipo de humor que se faz à custa dos fracos deve desaparecer, os pruridos “anticensura” dos comediantes “políticamente incorretos” são puro reacionarismo. Fruto de um momento doloroso de transição cultural — e é lamentável que os humoristas, que normalmente são a vanguarda do pensamento novo, estejam associados, no Brasil, a uma atitude reacionária. Sivia Pilz assimila o discurso de incorreção política e criou o blog com o objetivo explícito de provocar. O objetivo é legítimo, mas a quem se deve provocar, qual o objetivo do humor, afinal?
No Brasil o humor políticamente incorreto se manifesta de uma forma curiosa. Não é apenas um humor reacionário, que representa um “modus ridendi” de décadas passadas, mas também um humor corrosivamente antinacional. Hà uma obsessão em denegrir o povo, especialmente o povo pobre, em diminuir o mérito do que é nacional, em atacar a autoestima dos indivíduos, demolir a auto-imagem da nação. Nada disso seria errado se esse tipo de humor não tivesse se tornado tão prevalente, excludente de outros discursos, e se ele não estivesse, no atual momento histórico, afinado com os objetivos de imperialismos estrangeiros.
É difícil dizer que houve malícia em Silvia. O discurso ideológico nem sempre está na boca de quem o domina e entende. Uma das funções da ideologia é fornecer, justamente, elementos facilmente reproduzíveis para que aqueles que não a compreendem possam transmitir. Silvia representa uma ideologia de desmonte da identidade nacional, e é irrelevante se ela sabe disso e o faz conscientemente ou se apenas reproduz um discurso majoritário. Ideológicamente falando, as nossas intenções não tem a mais remota importância. Como diria Nietzsche, o relevante não é o que pensamos, mas o que dizemos. O discurso, sim, atinge a outros. De boas intenções, o inferno não carece. A monstruosidade não necessariamente está na intenção.
Silvia Pilz produzia seus textos quase impunemente porque eles tinham alcance restrito. Ela não estava no foco de atenção. A liberdade de expressão é praticamente ilimitada se nós não temos meios de chegar às massas. Ninguém se importa com o que eu diga na solidão de meu quarto, poucos ligam se eu digo besteira na mesa do bar, raros se incomodam com as postagens desse blog, mas se algum artigo meu alcançar milhões de pessoas, haverá certamente milhares de apoios e milhares de rejeições.
Precisamos estar preparados para isso. Não podemos almejar a um absurdo direito de agir sem consequências. Embora todos queiramos um moto perpétuo, um motor imóvel, um impulso sem reação, todos esses ideais são infantis. Queremos fazer o que desejamos sem custo e sem consequências, mas a vida nos ensina que tudo tem um preço e cada ato produz reflexos. Mesmo palavras marcam quem as ouve. “Quem diz o que quer, ouve o que não quer”. Se poucos ouvem, poucos gostam e poucos odeiam.
Ocorre que sempre houve grupos que não podiam retrucar. Havia os desvalidos, os desassistidos, os marginalizados, os oprimidos. Eles não podiam nos fazer ouvir o que não queríamos porque não tinham voz, ou porque enfrentavam mais consequências por reagirem do que por destilarem sua mágoa à noite para o travesseiro. Sim, nós os atacávamos sem piedade, e sem perceber, talvez, que éramos impiedosos, e como nunca recebíamos qualquer reação, supúnhamos que não se ofendiam, tal como Renato Aragão se expressou.
Aqueles grupos, porém, que nos poderiam atacar de volta, esses evitávamos. Não queríamos mexer em vespeiros, não queríamos “polêmicas”. Com o tempo internalizamos que mexer com certos assuntos é perigoso e “macaco velho não mete a mão em cumbuca.” Não havia, porém, polêmica alguma em atacar os que não reagiam.
Mas o mundo mudou. Surgiram ferramentas através das quais as vozes dos pequenos conseguem unir-se num coro assustador. Vozes antes mudas passam a se ouvir, e elas são legião, e elas são respeitadas porque formam opinião independentemente dos veículos. Então passa a haver consequencias para quem as provoca também. Subitamente aqueles que não tinham voz se ouvem (sic). Ouvindo-se mutuamente, descobrem que tem, também, uma forma limitada de poder. Podem punir quem os desagrada. Já não mais precisam chorar para as paredes, impotentemente.
Exigem respeito.
O mesmo respeito que concedíamos aos vespeiros. Não é que estejam limitando os assuntos do humor. É que nunca foi de fato humor a humilhação do humilde. Ríamos de nossa crueldade, e a chamávamos de “humor”. Ríamos de nossa insensibilidade, e a chamávamos de “humor”. Isto não é censura, é a cultura brasileira passando da adolescência e chegando à idade adulta.
Por que nos surpreendemos que as pessoas se ofendam? Porque antes não ouvíamos sua dor, não sabíamos do seu ranger de dentes á noite, humilhadas pelo dia. Atacá-las era como atirar no vento. Era um prazer inconsequente. Como apertar o botão em Lisboa e morrer na China um mandarim desconhecido, embora sua herança fosse somente nosso riso.
O mandarim não tinha defesa. Por isso apertávamos o botão sem culpa. O pobre não reagia, então ríamos dele, de seus dentes, de sua cor, de seu sotaque, de suas doenças.
Mas um dia descobrimos que aqueles de quem ríamos eram pessoas. Isso nos surpreende porque nunca imagináramos que eles se ofendessem, que tivessem uma dignidade própria. A surpresa de Sílvia decorre de seu atraso para enxergar que o mundo mudou. E esse é mais um episódio que nos mostra a lamentável decadência de nosso humorismo, que em vez de olhar para a frente, imita ideias estrangeiras e reproduz discursos conservadores.
Silvia agora está de volta ao seu espaço pessoal limitado. Pode continuar dizendo o que dizia antes, mas atingirá a menos pessoas. Isso certamente preserva a sua liberdade de continuar dizendo qualquer bobagem que pense, mas talvez os jornais tenham que começar a se preocupar em oferecer ao leitor mais do que o discurso unilateral da elite — e eu não consigo aceitar que existam pessoas dotadas de polegares opositores e telencéfalos altamente desenvolvidos que são simultaneamente capazes de entender essa necessidade de diálogo do jornal com o leitor, de pluralidade de conteúdo, como uma forma de “censura”.
Censura era quando você não tinha como se fazer ouvir, tinha que engolir a verdade pronta vinda de cima. Não existe censura de muitos contra um, existe apenas a reação normal de se deparar com as consequências do que diz. Ninguém deve almejar a liberdade de ser inconsequente. Esta é uma das muitas falsas liberdades, que só existem porque existiram pessoas tão poderosas que podiam se dar ao luxo de não medir as consequencias de seus atos.