Parece que o Brasil virou crime. É impossível falar do país que é nosso sem desagradar a alguém. Para toda tentativa de se abordar a história e cultura nacional haverá um grupo que se ofenda e que se defenda. É como se fosse preciso passar uma borracha sobre todo o tempo até ontem e começar a viver de novo em prol do amanhã. Qualquer coisa menos que isso será controversa.
Minha percepção desse absurdo vem crescendo há algum tempo, mas o alarme soou quanto li que o movimento negro acusa de racismo a Farinha de Trigo Dona Benta porque quem cozinhava no Sítio do Picapau Amarelo era a Tia Nastácia. À parte o fato de que Dona Benta também cozinhava, o questionamento parece racional até que você toma conhecimento da grita do movimento negro contra o restaurante Divino Fogão por usar a imagem de uma mulher negra como mascote. Face aos dois fatos, resta a pergunta: ainda é possível fazer alguma referência à cultura brasileira sem ser acusado de racismo?
A pergunta é perfeitamente cabível porque é racismo quando a farinha se chama Dona Benta em vez de Tia Nastácia, mas também é racismo quando o restaurante usa como símbolo a cozinheira negra. Fica parecendo que ainda achariam racismo se a farinha fosse Tia Nastácia e se a mascote do restaurante fosse branca:
Usar a imagem de uma negra para vender farinha de trigo, que é branca, que falta de respeito! Isso é associar a imagem da mulher negra à culinária e etc.
Que história é essa de o restaurante ter uma mascote branca se quem cozinhava eram as negras?
Daí o próximo dono de restaurante dá ao lugar um nome qualquer em inglês ou búlgaro e vão reclamar que não se valoriza a cultura nacional. Como valorizar a cultura nacional se toda ela está impregnada de escravismo e intolerância, se toda ela foi criminalizada?
Quando Ruy Barbosa foi ministro no governo de Campos Salles, mandou queimar toda a documentação do Arquivo Nacional que se referia à escravidão, segundo ele “para apagar esta mancha da história da Pátria”. Ficamos sem os arquivos mas a mancha continua até hoje, pois não é o rabo que abana o cachorro. Ficamos com esta estranha situação, em que qualquer lembrança de nosso passado pode ser associada com racismo, intolerância, preconceito e todos os valores opressivos e negativos que o primeiro iluminado defensor dos fracos e oprimidos queira atirar contra nós. Diante disso, melhor falar de elfos e pensar em Nárnia, porque o Brasil agora é crime.
Não quero que entendam este texto como uma reação intolerante de alguém que deseja defender um status quo qualquer. Trata-se, em vez disso, de um apelo à razão. A história do Brasil não se limita à escravidão, e mesmo que se limitasse, deixar de falar sobre isso não diminuirá sua gravidade e nem modificará as suas consequências para o presente. Em vez de criminalizarmos referências culturais inocentes, como a Farinha de Trigo Dona Benta ou a mascote negra do Divino Fogão, devemos pensar em fazer algo de positivo para melhorar as condições de igualdade social e econômica para os grupos menos favorecidos de nossa sociedade. Não se fará isso com debates bizantinos sobre palavras e frases, embora isso possa ser feito com respeito e até de forma esclarecedora.
As únicas coisas que podem influir decisivamente sobre o futuro são ações coordenadas — e muito disso já tem sido feito. Só peço que, em nome da boa causa da igualdade racial, não ataquemos a identidade nacional desta forma. Especialmente na literatura. Escrever sobre um fato não é endossá-lo. Romancear um fato não é o mesmo que dizer que ele é correto. Aquilo que faz parte do passado precisa ser mostrado e não apagado. Não podemos limpar o passado do país fingindo que nele não forma cometidos os atos que efetivamente foram cometidos, e não podemos considerar que as referências a este passado são necessariamente criminosas — ou tornaremos cada vez mais difícil a defesa de uma identidade nacional brasileira frente a essa avalanche de conteúdo de massa que nos chega de fora.
É uma ingenuidade achar que os povos ditos desenvolvidos têm histórias limpas. Eles só não são tão tolos a ponto de descartar sua história para idolatrar bobagens importadas só porque cinco ou seis se ofendem com coisas que aconteceram há séculos. Apenas precisamos desenvolver a sensibilidade de não mais idolatrar o mal — como fizeram os americanos ao deixarem de massacrar índios em filmes de faroeste. A menção, porém, a tais massacres, será sempre inevitável em toda história ambientada no século XIX deles, embora dificilmente ela seja foco, ou, no caso de ser, seja mostrada como algo positivo. Tal como é inevitável lembrar que as cozinheiras eram negras, tanto quanto a maioria dos capitães do mato.
Quando atingirmos a maioridade intelectual, nos ofenderemos com coisas mais importantes que a Farinha de Trigo Dona Benta.