O amigo João Gerônimo dos Santos se mostra espantado com um texto em que Isaac Asimov descreve o processo de criação do épico “Fundação”. Não pela sua dificuldade, mas pela forma como o autor o apresenta: sem glamour e sem divina centelha (também conhecida como “inspiração”). Para Asimov, o processo foi algo assim:
Eu tinha um encontro com o Sr Campbell para conversar sobre o enredo de um novo livro, mas o problema é que, até a reunião começar, eu não tinha enredo nenhum preparado. Eis que utilizei um recurso a que sempre costumo recorrer. Abri um livro e fui criando a história a partir da primeira imagem que vi.
O livro que eu tinha em mão era uma peça de Gilbert e Sullivan. Assim que vi a rainha fada Iolante se jogando aos pés do soldado Willis. Pensei em soldados, em impérios militares, no Império Romano…
– Ah! Um império galático! Por que não escrever um livro sobre um império galático e o retorno do feudalismo, narrado do ponto de vista de um cidadão do Segundo Império? Afinal, eu tinha lido “O Declínio e Queda do Império Romano” duas vezes!
Reuni-me com Campbell, excitado, e lhe contei a nova ideia. Em cerca de uma hora, criamos a noção de histórias interconectadas que mostrariam os mil anos entre o Primeiro e o Segundo Império Galático e a base para as histórias seria a psicohistória.
Na opinião de João Gerônimo, a revelação de Asimov parece “chocante”:
Confesso que fiquei um tanto decepcionado em saber que Asimov teve a ideia após uma busca aleatória em um livro, cujo tema nem tratava de ficção científica, nem de previsões e cenários possíveis acerca do futuro da civilização. Pode ser que essa tenha sido uma declaração fantasiosa a respeito da fonte de inspiração do autor, mas para alguém que anos mais tarde veio a se tornar nome consagrado da literatura ocidental, uma referência para diversos autores de seu subgênero, eu esperava mais seriedade, talvez, na escolha de temas de livros. Afinal, ficção científica não é um tema fácil de abordar, pois lida com extrapolações sobre o avanço tecnológico e tendências (até transformações) sociais em um futuro próximo (ou distante, no caso de Fundação).
Eu assinalei algumas palavras e trechos que julguei significativos porque acredito que a reação de João Gerônimo é muito sintomática da maneira idealizada e irrealistas com que tendemos a abordar a literatura, apesar de os que a realmente fazem com qualidade estarem há séculos dando sinais de fumaça de que a coisa não é exatamente tão fofa quanto se crê. G. K. Chesterton famosamente disse que “o temperamento artístico é uma condição que acomete aos amadores” (ou algo assim). O choque sofrido por João Gerônimo revela uma profunda condição de “temperamento artístico”.
O temperamento artístico consiste, basicamente, em atribuir ao fazer literário uma aura sagrada. O próprio termo “autor” em vez de escritor já revela essa idealização, pois remete a um ato originador, a uma posse exclusiva e mística. Assim como conceitos de “criatividade” (originalmente um atributo divino), “inspiração” (a ideia de que os deuses entram em nós para que possamos criar é herdeira do profetismo hebreu), “originalidade” (ou a busca por ela, vista como uma busca pela excepcionalidade e pela imortalidade). A poesia, mãe de toda a literatura, tem seu nome vinculado ao ato de criar (“poiésis”, em grego) e os poetas foram, em certa época, chamados de “vates”, termo que originalmente denominava os oficiais da religião romana que eram responsáveis por prever o futuro (donde “vaticínio”). Assim as “academias” (cujo nome deriva de uma escola de filosofia fundada por Platão) e seus “imortais” (que assim se tornam por atingirem “glória imorredoura” com suas obras). Tudo isso é “temperamento artístico”, tudo isso é para consumo externo. Os escritores de verdade nunca se sentiram assim, pelo menos não antes de ficarem velhos e desejarem idolatria para consolá-los na solidão da idade.
Para o escritor o que existe, de fato, não é nem Apolo com suas musas, nem Javé soprando a verdade para dentro de nossas narinas, nem a capacidade de antever o futuro. O que existe, no duro, é a vontade de encher páginas com palavras. Assim como o maratonista olha para a pista à frente em vez de pensar no pódio ou sonhar com o simbolismo geométrico do traçado, como o pedreiro se preocupa em fazer boas paredes em vez de planejar as orgias que o dono da casa organizará em sua suíte. Pode parecer alienante, mas não há futuro sem presente, não há fruto sem semeadura. O escritor que se perde a sonhar o que será de sua obra pronta acaba não a terminando nunca. Escrever é escrever, não é posar de escritor. Nada contra quem posa, mas que pose em cima de uma pilha de obras que justifique a pose.
E o fazer literário necessário (posto que se supérfluo o sentisse, o escritor não escreveria) não se faz com misticismos (ou satanismos), mas com processos materiais e mundanos. Muita vez um autor repensou e achou uma frase melhor enquanto apontava o lápis cuja ponta se quebrara. Tudo influi no fluxo das ideias, e é ingenuidade achar que as ideias se servem da matéria para adquirirem forma literária. Muito pelo contrário: é a matéria que vai se apropriando de imatéria (ideias) para encontrar caminhos e produzir uma obra. A aleatoridade é, portando, uma parte tão importante do fazer literário quanto a determinação e o planejamento. A influência da aleatoriedade não diminui o valor da obra e nem do autor, pelo contrário o aumenta porque o autor que se deixa penetrar pela realidade acaba dando testemunho de si mesmo e do mundo que o cerca, o que ajuda a dar densidade (e portanto verossimilhança) à idealização pura.
Um outro aspecto do choque do amigo João Gerônimo é sua dificuldade para aceitar o autor que o autor não é um especialista. Asimov lia até mesmo obras infanto-juvenis, ora! Acostumado a ver em Isaac Asimov um autor de ficção científica, não lhe ocorreu que ele talvez gostasse de ler (ou até de escrever) outros tipos de obras. É muito raro que um autor de best-sellers faça o que gosta. Na época de Asimov havia um grande mercado para ficção científica, tal como hoje há para a fantasia, e muita gente que teria escrito outra coisa se vivesse em outro tempo embarcou na mesma onda. Talvez seja até irônico que as obras mais inteligentes e criativas sejam justamente escritas por aqueles que queriam escrever outra coisa. Por não se conformarem em fazer o que não gostam, tentam dar variedade ao que escrevem, trazer influências de fora, subverter as regras. O autor que realmente gosta (e só gosta) do gênero que escreve tende a se tornar um diletante, um diluidor, pois só conhece aquilo que lhe chega através de obras parecidas com as suas. Esse sistema fechado, retroalimentado, é o que explica a progressiva diluição e compartimentação da literatura de fantasia, que cada vez mais se especializa em gêneros cultivados à exaustão. O surgimento de diversos “subgêneros” em uma forma artística pode ser um sinal de sua decadência pois só enxergamos tantos detalhes quando nos fixamos excessivamente em um único lugar.
O choque diante da revelação de Asimov leva o amigo João a suspeitar que o autor estivesse mentindo, que fosse uma mera bravata para inspirar os novatos, pois um autor que se torna referência deve ter mais seriedade. A contradição do raciocínio é gritante: a seriedade de um autor não é afetada por ele mentir sobre seu processo criativo, mas seria comprometida se ele não tivesse uma relação idealizada e respeitosa com a escrita. O autor pode mentir, desde que não escreva com alegria e espontaneidade. O “temperamento artístico” de que fala Chesterton odeia a espontaneidade. Se escrever é algo sagrado (como se crê) então deve haver uma reverência, uma penitência, um ritual. Escrever despreocupadamente é como escrever despudoradamente. Há falta de respeito em escrever com facilidade, em ter ideias aos borbotões. O leitor não quer ouvir que o seu ídolo fez rapidinho aquilo que ele tanto reverencia, o que me lembra Djavan.
Djavan foi ao programa do Jô Soares, que lhe perguntou como ele fazia suas composições, tidas como complexas e poéticas. Pois bem, o cantor jogou um balde de água fria em quem o ouviu. Em vez de citar rituais cabalísticos, viagens místicas, leituras dos Vedas ou coisa parecida, ele simplesmente disse que se reunia em estúdio, com os músicos de sua banda fixa, quando a gravadora exigia um novo disco ou quando a necessidade de gravar coisa nova para os shows ficava forte, e então eles reuniam as improvisações que haviam desenvolvido nos shows, as experimentações que haviam feito em casa e alguma coisa que “pintava na hora” e faziam a música. A letra, essa vinha depois, no fluxo da melodia.
Na época em que assisti à entrevista do Djavan eu fiquei ofendido com ele, tal como João agora ficou ofendido com o Asimov. Pareceu-me inconcebível que o cantor fosse tão desleixado com sua obra, que gravasse em obediência à pressão da gravadora ou porque apenas tinha vontade de suprir novidades para os seus shows. Hoje eu já perdoei Djavan, já entendi que para quem faz arte, seja música, pintura ou literatura, a maturidade implica em uma facilidade cada vez maior para fazer aquilo que é cada vez mais difícil que os amadores façam. Assim, ficção científica não é um “tema difícil de abordar” para quem faz ficção científica. Nenhum tema é difícil de abordar para quem gosta dele e se especializa. A dificuldade é aparente porque somente pessoas especiais podem conseguir abordar ficção científica. Pessoas que têm um conhecimento excepcional de ciências e de outras coisas. Mas não acho que a ficção científica seja mais difícil que outros gêneros nesse aspecto. Para fazer um bom romance sentimental o autor certamente não precisa entender de física, mas precisa ter uma vivência emocional e um conhecimento psicológico que talvez um físico não tenha. São especializações diferentes, e para quem não entende de um tema, ele é tão difícil quanto qualquer outro tema desconhecido.
O que nos leva à ideia do “método Asimov”. A ilação seguinte
feita pelo João é que Asimov teria desenvolvido um “método” para
escolher seus temas e desenvolver seus argumentos. Não me parece
que tenha acontecido isso. Asimov nunca publicou nenhum conselho
nesse sentido (este texto não é um conselho, é um relato) e o
contexto da história não me parece sugerir que o “método” funcione
para outras pessoas, ou que tenha funcionado para Asimov todas as
vezes. “Método” é uma palavra forte, que nos faz supor que
a + b = c
. Outra pessoa que não o Asimov leria os
mesmos livros e teria ideias diferentes, ou não teria ideia alguma,
ou teria a ideia e não a poderia desenvolver. Então não existe aí
um método. Na verdade não existe “método” para a literatura, a não
ser aquele que cada um desenvolve, com base em suas leituras e
experiências. Seria melhor dizer “processo” em vez de “método”,
porque um processo é algo aberto, interativo e mais rico.
O que funcionou para Asimov só funcionou porque ele teve uma alfabetização precoce e leu muito, e leu desde muito cedo. Também se tornou poliglota (russo, hebraico, iídice e ucraniano, depois inglês, alemão e espanhol) ainda jovem e teve acesso a um leque de leituras com o qual pouca gente sonha. O fato de termos mais informação, através da internet, não quer dizer que tenhamos mais conhecimento. Ou mesmo mais aprendizado. Asimov certamente sabia com mais profundidade uma variedade de assuntos que hoje as pessoas se gabam de conhecer porque rapidamente localizam as informações na internet. Acontece que a facilidade para recuperar o conhecimento armazenado é uma habilidade diferente da capacidade de reter informações na própria memória, e gera resultados diferentes. O conhecimento que permanece externo a nós não resulta em conexões, o que nos dificulta reconhecer padrões e encontrar uma história que cruze universos diferentes. As conexões naturais, processadas lentamente dentro de nossa mente, a partir de memórias retidas de nossas leituras, essas são as conexões com maior valência.
Porém, faz parte do modelo mental moderno, educado na rasa autoajuda, a ideia de que o esforço deve ser abolido, pelo menos o esforço do aprendizado. Faz parte das ilusões da auto ajuda a ideia de que você pode fazer o complexo seguindo métodos simples. Ela vende atalhos, ensina os “segredos dos profissionais”. A ideia é fazer o leitor pensar que pode economizar a experiência de vida que levou o profissional a saber o que sabe – o que, aliás, nos faz desejar seguir o “método Asimov”.
Asimov não tinha um método, ele achou um jeito de usar o conhecimento que tinha. Seguir o método dele sem ter tido a experiência e a cultura dele, é como achar que você pode chegar em Belo Horizonte andando 500 km rumo noroeste, tanto faz se você sai do Rio de Janeiro ou de Manaus.
Também faz parte desse modo de pensar a ideia de que você pode aprender a fazer X sem precisar fazer X, o que é uma forma de atalho, aliás. “Emagreça comendo”, “aprenda dormindo”, “exercite-se em casa”, “cozinhe sem óleo”, “aprenda filosofia consertando motocicletas”… Junte dois verbos antitéticos ou não relacionados, ou crie uma frase usando a palavra “sem” e você poderá inventar um novo conceito de autoajuda.
Como as pessoas não querem ler o que Asimov leu, mas gostariam de ter os resultados que ele teve, então entram em cena os meios alternativos de buscar o que Asimov achou. Temos a ideia de um “método Asimov”. Mas quando essa ideia se desfaz diante da confissão do autor de que ele escolhia suas ideias aleatoriamente e as desenvolvia de um modo totalmente isento de “glamour”, então surge a decepção, a ideia de que o autor está mentindo para nós, ou faltando para com o respeito pela difícil arte.
Porque queremos que o autor sofra como nós, que ainda somos inexperientes e que ainda padecemos para fazer o que nos parece apenas sofrível? Porque não admitimos que os autores experientes fazem fácil que nos custa sangue? Acredito que é porque, no fundo, vemos neles ídolos e heróis. Ambos são admiráveis pelos seus sacrifícios. Quem não se sacrifica não nos parece heroico, parece um escroque, um vilão de fancaria. O herói apanha, é traído, triunfa a custo. Enquanto isso vemos o vilão comer as melhores mulheres e receber massagem nas costas. Queremos que o vilão se ferre no fim, e nos sentimos enganados quando descobrimos que o nosso ídolo não sofre.