Esta é a versão que postei no próprio site do Rodrigo Gurgel, mais enxuta e mais direta ao ponto.
Eu tenho uma tese sobre o assunto, que ouso compartilhar aqui: a literatura brasileira padece de diletantismo e isso lhe causa uma perda de foco e de profundidade.
“Diletantismo”, eu digo, porque nós não temos uma estrutura para revelar, remunerar e orientar a formação dos escritores. Não há revistas publicando contos, não há prêmios literários sérios e amplamente divulgados, não há perspectiva de carreira para quem pareça com um romance estupendo. Na verdade, quase tudo que um jovem autor possa fazer vai lhe custar dinheiro em vez de lhe trazer. Isso tem consequências.
Se a literatura, em vez de ser uma perspectiva de carreira para quem tenha inclinação às letras, aparece como algo custoso, isso vai provocar duas influências, ambas negativas a meu ver.
A primeira é que a literatura será vista como um hobby ou como algo desconectado do processo produtivo cultural e da sociedade como um todo. Deixa de ser parte da essência do ambiente cultural e se torna um acessório.
A segunda influência é que esse hobby, por ser custoso, será acessível somente aos bem nascidos ou aos que consigam obter bons empregos. Esta influência se bifurca em duas outras, ainda mais negativas.
Por um lado, a literatura feita pelos bem nascidos tende a ser alienada, mais especialmente em um país como o nosso, onde são tão díspares as condições de vida entre diferentes comunidades, tanto horizontalmente quanto verticalmente.
Por outro lado, a literatura feita pelos empregados tende a ser produzida no tempo que lhes sobra, com as energias que ainda lhes restem.
Se a primeira é uma literatura sem vivência de primeira pessoa, a segunda é uma literatura de jorros precários.
A primeira se baseia em “pesquisa”, muitas vezes livresca, ou em informações de segunda mão, em geral distorcidas ou preconceituosas. A segunda sofre de falta de continuidade.
Não vou me estender muito sobre a literatura dos bem nascidos porque não é o meu caso, apenas citei as impressões que ela me evoca, às vezes. Às vezes. Mas a literatura dos empregados tem tudo a ver comigo.
Sem perspectiva de se formar escritor e crescer com isso, o jovem que se acha talentoso precisa dedicar suas melhores energias e os melhores anos de sua vida a aprender coisas que nada têm a ver com literatura, perseguir uma carreira extra-literária e acumular capital até obter segurança material. Enquanto isso praticará a literatura nas horas vagas, com o que lhe reste de ânimo. Se um dia obtiver a estabilidade sonhada, talvez possa até dedicar-se integralmente a escrever, mas já será tarde.
Será tarde porque os anos que passou tendo a literatura num canto de sua vida, em vez do centro, determinaram que sua escrita se cristalizasse no amadorismo. Ele poderá passar a escrever em tempo integral, mas continuará sendo um amador.
Tem sido assim há bastante tempo. Mas o problema do amadorismo é grave.
O amador não possui, realmente, os conhecimentos profundos que são necessários para a atividade. A excelência reside no profissional, no que pratica continuamente, que se dedica exclusivamente. Um peladeiro, amador, dificilmente será tão bom quanto um jogador profissional. A menos que o primeiro tenha muito talento natural e o segundo seja um grande embuste. O amador sobrevive do inato, do instinto e de alguma coisa que conseguiu ajuntar de conhecimento e prática ao longo da vida, no tempo que sobrou de sua dedicação à sobrevivência.
A condição inerente do amador é não ter, portanto, desenvolvida plenamente a capacidade de grande observação. Aquela visão arga que permite a um autor profissional delinear um painel detalhado e abrangente de um contexto. O tipo de romance que você procura, o “romance épico” como eu preferiria chamá-lo, somente pode ser produzido por alguém de grande cultura (para conhecer o assunto) e de grande prática literária (para poder manipular toda a complexidade necessária à construção de uma obra de tal fôlego).
Certamente alguém como eu jamais conseguirá. Por mais que eu tenha uma cultura variada e um bom domínio da norma culta, tenho certeza de que um e outro apenas parecem grandes porque a média é baixa: em geral os brasileiros não têm muita cultura e conhecem mal a norma culta. Ainda mais: o pouco hábito de escrita entre nós pode criar grandes ilusões literárias em pessoas que conseguem ir além do instrumental.
Acima de tudo, o amadorismo se torna cruel quando aqueles que possuem mais dinheiro ou influência utilizam esses recursos para se promoverem, e assim adquirem um protagonismo que não conseguiriam pela simples força de seus livros. Nossa literatura hoje compete com livros escritos por celebridades (até Paulo Coelho era celebridade antes de virar mago literato, tendo sido renomado compositor antes disso) ou que apelam ao senso comum e à vulgaridade (como a obra de Bruna Surfistinha). Isso nos leva a concluir que, além de todos os obstáculos estruturais já citados, que castram a habilidade criativa de tantos autores nacionais, ainda existe a outra bandeja da balança: não há demanda para esse tipo de romance que você procura. Pelo menos não escrito por um autor nacional.
O que nos leva ao problema da forte influência estrangeira, que compete com o produto nacional, mas isso é coisa para outro dia.