Tenho a certeza de que alguns dos que lerão este texto se surpreenderão por sua simples existência, outros não entenderão sua razão de ser, mas os poucos que me acompanham há algum tempo logo entenderão todos os porquês. Já faz algum tempo que eu participo de debates literários nas redes sociais e a minha posição mais frequente nestes é sempre no sentido de criticar os “best-sellers”, nacionais e estrangeiros, e glorificar obras que têm um pulso mais lento e firme. No entanto, os tais poucos que me conhecem devem se lembrar que eu sempre fiz questão de admitir exceções nesta crítica: entre os autores estrangeiros que sempre fiz questão de deixar de fora de minhas diatribes estiveram J. K. Rowling e Stephen King — mesmo admitindo, como não poderia deixar de admitir, que eles não são comparáveis aos autores que normalmente cito como exemplos. Não são comparáveis, por exemplo, a um Herman Melville, a um Charles Dickens ou mesmo um H. P. Lovecraft.
Minhas razões para excetuar Rowling e os livros da série de Harry Potter são múltiplas. Agora que completei a leitura de todos, posso explicar os motivos pelos quais esses livros não merecem as ofensas que já dirigi, por exemplo, a um bruxo com outros poderes e cujo nome, por um tempo, eu também evitei dizer. Não falo de Voldemort, obviamente. Posso resumir em seis as minhas razões para achar valor na série Harry Potter:
Embora não primorosamente escritos (tal deficiência é particularmente doída no primeiro), o nível de comando da linguagem formal e das técnicas narrativas que Rowling consegue empregar é significativamente maior que o da maioria dos concorrentes. Não surpreende que esses livros, com todos os seus defeitos, tenham tido o sucesso que tiveram, porque possuem qualidades literárias que vão além do nível pedestre da maioria dos best-sellers. Além do mais, a qualidade da prosa de Rowling evolui significativamente ao longo da série. Mas analisar as mudanças de seu estilo vai além de meus objetivos.
Embora a história não faça mais do que aplicar diretamente e sem surpresa o conhecido clichê da “Jornada do Herói”, isso não chega a irritar porque se trata, exatamente, do tipo de literatura para o qual a Jornada parece um recurso útil. Mitos são particularmente úteis para levar mensagens a leitores jovens porque eles ainda não têm nem o gosto e nem a capacidade para dedicar-se a reflexões mais frias e racionais. O calor dos mitos oferece aos jovens um caminho mais seguro.
Existe um subtexto curioso quando contemplamos a série, no seu todo, como uma obra só: ao narrar de forma contínua sete anos da “educação mágica” de Harry Potter e seus amigos, Rowling espelha justamente a transformações pelas quais os adolescentes passam, entre onze e dezoito anos (ainda que no mundo dos feiticeiros a maioridade chegue aos dezessete). Ela consegue, de uma forma muito competente, expressar estas transformações não apenas de uma forma crível mas também de uma forma atraente para os seus leitores. Não é apenas Harry que cresce, crescem também os seus leitores (embora eu duvide muito que eles esperem para ler um livro por ano, como a autor certa vez teria dito que gostaria que fosse) e cresceu J. K. Rowling também, porque ela certamente não é a mesma que era quando começou a escrever a série. O amadurecimento da autora se revela em muitos aspectos, dos quais o mais interessante é a matização de personagens como Severus Snape, Sirius Black, James Potter, Albus Dumbledore, Neville Longbottom, Ron Weasley, Remus Lupin e Draco Malfoy (com seus pais). Nenhum destes personagens chega ao final da série exatamente como nela entrou. O que parece vilão e detestável se mostra heroico, apesar de falhas e fracassos. O que parecia desastrado e sem sorte chega a equivaler-se a Harry em heroísmo (ou a superá-lo, se considerarmos que, mesmo no contexto da história, nunca teve muito a seu favor). O que parecia doce se mostrou, também, fútil e egoísta. O que parecia um santo se mostra cruel e desprezível, apesar de ainda capaz de fazer o bem. Quem parecia merecedor de absoluta confiança se mostra um caráter dúbio. Um que sempre exibiu grande coragem e segurança se revela um covarde e precisa ser admoestado por Harry para ter coragem de fazer o que se esperava que fizesse. O próprio Harry, inicialmente um menino doce e inocente, não apenas se deixa obcecar por instintos assassinos, como ambiciona poderes das trevas e chega a executar “maldições imperdoáveis” contra quem se interpõe em seu caminho. Os únicos que parecem unidimensionais são os secundários — entre eles Bellatrix Lestrange, que jamais questiona Voldemort, apesar do que ele lhe faz e à sua família, ou Dolores Umbridge, rematada psicopata que, em qualquer circunstância, apenas quer um meio de controlar e torturar pessoas. E Voldemort, claro, pois matizar demais ao vilão seria incompatível com o gênero de que falamos. Mesmo assim ele também tem sua Jornada particular, até que, no fim, sabendo do sofrimento que ele causou ao mundo, nos compadecemos de seu destino.
Os livros não se limitam à história. Seguindo (mas de forma alguma eu diria que igualando) a respeitável tradição de perfeccionistas como Boleslaw Prus (escritor polonês que se tornou um egiptólogo para poder escrever um romance ambientando no Antigo Egito) e J. R. R. Tolkien (que escreveu mais sobre o mundo “Senhor dos Anéis” do que as páginas do próprio romance, a fim de criar e desenvolver a ambientação), Rowling produziu todo um plano de fundo para o que narra, incluindo regras completas do jogo de Quidditch, dezenas de títulos de obras citadas (com suas resenhas e autores), biografias para dezenas de personagem, mapas e até histórias acessórias. Todo esse trabalho ajuda a dar densidade à narrativa, especialmente do segundo livro para a frente, quando se vai se tornando mais necessário tornar tangível o mundo de Harry Potter. Que Rowling tenha sido capaz de executar este planejamento, esta pesquisa e esta criação acessória, dando credibilidade a uma história que, inicialmente, parece não ser mais que um conto de fadas ambientado num subúrbio inglês; nos dá a medida de que ela não foi apenas uma aventureira com sorte. Se assim fosse, a história teria desmilinguido em suas mãos a partir do segundo livro — e sabemos que isso não aconteceu. De fato, em vez de desmilinguir, a qualidade literária deles vai melhorando.
Os personagens têm vida, inclusive os secundários, em sua maioria. A marca de qualidade de uma boa obra literária é que os personagens assumem personalidades. Os personagens de Harry Potter são tão marcantes que ao terminar a leitura você é capaz de lembrar de diversos deles e sua aparência (eu li os livros até o quarto antes de ter visto os filmes — e ainda não vi todos os filmes). Mais do que isso, você se lembra de traços de sua personalidade e de coisas marcantes que fizeram. Todos que leiam a série terão seus personagens favoritos, e isso ajuda no sucesso. Entre os personagens que me fascinaram mais estão Neville Longbottom (por sua grande transformação psicológica ao longo da série), Draco Malfoy (por sua progressiva humanização) e Severus Snape (por ser ao mesmo tempo previsível e surpreendente). Claro que há os personagens unidimensionais, que parecem existir para sempre dizerem ou fazerem uma coisa só — como Luna Lovegood e Bellatrix Lestrange — e os caricatos, como Hagrid e Filch. Mesmo alguns deles conseguem, porém, surpreender-nos em algum momento. A surpresa de Luna está em sua incrível resiliência diante da dor e da tortura, sendo capaz de oferecer conforto aos que estão em situação pior. A supresa de Bellatrix está em sua absoluta dependência psicológica de alguém que lhe dê rumo na vida, já que está afastada de boa parte de sua família e obviamente ficou louca depois de quase vinte anos presa na horrível prisão de Azkaban. Hagrid e Filch não oferecem surpresa alguma, porém.
O mundo fantástico criado por Rowling é suficientemente atraente para o leitor, qualquer que seja a sua idade. Embora ela tenha cometido certas excessivas liberdades ao reimaginar certas criaturas, estas liberdades vão se reduzindo à medida que a série avança, com as criaturas mais problemáticas saindo de cena (caso dos “grindlows”). De uma forma geral, porém, as criações mais contidas de Rowling (os “testrais”, os patronos e as aranhas gigantes, por exemplo) ou as criaturas que ela readaptou com mais suavidade (caso dos elfos, dos duendes, dos dragões e dos lobisomens) funcionam melhor do que os seus espasmos de criatividade.
Juntando tudo isso, podemos dizer que a leitura dos livros não é perda de tempo para um adolescente. Estes livros podem ser úteis em uma biblioteca escolar, embora eu acredite que, se forem parar lá, deva ser por doação e nunca por aquisição pelo governo, pois verbas públicas não deveriam ser usadas para subsidiar a cultura e a literatura de outros países.