Texto introdutório que pretendo incluir na publicação de minha tradução de “A Terra da Noite”, de William Hope Hodgson, que estou por terminar e sairá pela Editora Clock Tower.
Esta é a tradução possível para “A Terra da Noite”. Não é uma tradução literal, embora não chegue a ser uma “recontagem” como as antigas publicações de clássicos da literatura feitas pela Ediouro. Há um provérbio italiano segundo o qual os tradutores são necessariamente traidores, seja da forma seja do espírito do original com que trabalham. Traduttore, traditore e o que resta ao tradutor é escolher o que ele se conformará em trair.
Alguns optarão por buscar a fidelidade possível à forma do original, mesmo que isto requeira abundantes notas de rodapé para explicar o que é intraduzível. Outros optarão pela transmissão do sentido do original quanto seja possível, mesmo que tenham de optar por parafrasear o original. Ao traduzir uma expressão idiomática como it’s raining cats and dogs o primeiro tradutor escreverá “está a chover gatos e cães” e porá uma nota de rodapé explicando que esta é uma forma de se dizer que está chovendo a cântaros ou que chove canivetes abertos e facas de ponta. O segundo tradutor simplesmente escreverá algumas destas expressões idiomáticas equivalentes.
Ambas as opções têm seu valor. Através da tradução literal a língua se enriquece, e um dos objetivos da tradução de obras originalmente em idioma estrangeiro é exatamente o enriquecimento da língua pátria. Através da tradução não literal, porém, é possível produzir um trabalho mais acessível ao público em geral. Como em quase tudo, o ideal é manter o equilíbrio entre os extremos, nem produzindo uma tradução crítica e erudita que não traz prazer à leitura e nem de outra forma criando uma paráfrase que apenas dá ao leitor uma vaga ideia do que o original realmente é.
“A Terra da Noite” é um romance que apresenta desafios significativos para a tradução — e possivelmente esta é uma das razões pelas quais encontrava-se ainda inédita em português. Entre estes desafios sobressaem-se o tamanho, com mais de cento e noventa mil palavras, resultando em um livro com mais de seiscentas páginas, mas também a linguagem em que a obra foi vazada. O tamanho apenas requer volume de trabalho, mas a linguagem requer uma escolha em que é impossível satisfazer a todos.
William Hope Hodgson pretendeu que a linguagem de “A Terra da Noite” espelhasse a linguagem de seu personagem-narrador, um homem do século XVII que tivera uma visão do futuro e que, no fim da vida, a escreve para publicação. Com esse intuito, Hodgson, imitou o estilo da Bíblia do Rei Jaime, que ele supunha ser o grande modelo da prosa do início do século XVII. Como é sabido por todos que têm o costume da leitura da Bíblia, a linguagem ali empregada se utiliza de certas estruturas e artifícios que não são comuns na linguagem corrente. Os tradutores da Bíblia não têm a liberdade de livremente recriarem o original conforme o seu entendimento, porque se espera que o texto reflita o mais fielmente possível o conteúdo original. Disso resulta a filtragem para a tradução de diversas características sintáticas e oratórias do original, inclusive de seus vícios de linguagem (pois, especialmente no Novo Testamento, algumas partes da Bíblia empregam uma linguagem “dura”, característica de estrangeiros mal acostumados ao idioma em que escrevem). Além disso, certas escolhas sintáticas feitas em função da oralidade do original antes de ser fixado ou da inexistência de pontuação nas antigas escritas deixam de fazer sentido em línguas modernas, tal como o emprego frequente da conjunção “e” para marcar o início de frases (mais característico do Novo Testamento) e circunlóquios repetitivos (muito característicos dos livros proféticos do Antigo Testamento, originalmente compostos para serem declamados como poemas).
Além de optar por tal estrutura narrativa calcada na Bíblia, Hodgson procurou, também, empregar um vocabulário “datado” para passar uma melhor impressão de antiguidade. Isso inclui conjugações verbais arcaicas como did be em vez de was, algumas delas pouco usuais mesmo na época em que a Bíblia do Rei Jaime foi publicada. E nem falemos aqui do sucesso (apenas relativo) que o autor teve em sua tentativa de emular a prosa do século XVII. Apenas digamos que Howard Phillips Lovecraft, em obras como “O Caso de Charles Dexter Ward”, consegue ser muito mais convincente, inclusive sem tornar o seu texto tão penoso de ler quanto o de Hodgson.
Somente estas características já seriam suficientes para causar certa repulsa ao leitor moderno, porém a pouca familiaridade de Hodgson com o inglês isabelino (ele que vivia no final da Era Vitoriana) causa uma camada adicional de dificuldade: o estilo da linguagem é contorcido e artificial, com raros momentos de brilho. Esta é, em suma, a grande dificuldade que o tradutor enfrenta ao tentar verter esta obra.
A opção pela literalidade transplantará para o português todos os vícios de um original que é unanimemente considerado pela crítica como uma “obra-prima defeituosa”, mas a opção pela paráfrase diluirá o espírito e o impacto de um original que, apesar de seus problemas de execução, ainda é uma obra que funciona espetacularmente em seu propósito — e em parte isto ocorre porque a escolha de Hodgson dá uma dimensão adicional à obra. Não é possível simplesmente desconsiderar os aspectos formais do original, e não é possível manter-se servil a eles.
Além do mais, o público potencial para este livro certamente o rejeitaria se fosse feita uma edição crítica muito fiel. Parte deste público a rejeitaria por ser excessivamente erudita, pois muitos dos leitores de fantasia e ficção científica ainda são jovens, que mal começam a inteirar-se da grande literatura, e não têm a bagagem necessária para acompanhar um texto denso demais. Outra parte, talvez maior, deste público, rejeitaria uma tal tradução porque, em essência, a literatura de fantasia e ficção científica, pela sua própria definição e pela sua história, é uma literatura mais leve e mais popular, com um sentido muito forte de entretenimento como meio. Aqueles que poderiam se interessar por uma edição crítica certamente não se interessariam por esta obra, uma vez que se trata de um autor de importância muito secundária para a literatura inglesa, ou então leriam o original.
Pelos motivos acima citados, esta é a tradução possível para “A Terra da Noite” e espero que meus leitores, inclusive e especialmente os mais eruditos, me perdoem as escolhas que tive de fazer, especialmente as mais controversas e desastradas. Uma primeira tentativa sempre vem inçada de erros e acertos parciais, que se pode corrigir nas edições e tentativas seguintes.
Assim, produzi uma tradução que, em vez de tentar agradar a todos, tenta a todos desagradar o mínimo possível. E onde falhar o meu propósito, que a força criativa do original cative o leitor e o convença a me perdoar pelas falhas inevitáveis.
Boa leitura.