Há algum tempo uma pesquisadora da UnB fez um levantamento estatístico e concluiu que a literatura nacional, na média, é o produto do trabalho de homens brancos, de classe média originários do eixo Rio-São Paulo. À parte algumas vociferações nas redes sociais, esse resultado não foi praticamente discutido por ninguém porque a descoberta incomoda.
Ninguém gosta de ser tachado de racista e ninguém é racista simplesmente por pertencer a uma classe privilegiada da população. Porém o que se detectou nessa pesquisa é um fenômeno relevante, que não podemos atirar ao vento sem nenhuma reflexão. A literatura é parte importante do pulso cultural de uma nação e a sua “saúde” reflete a saúde da cultura como um todo.
A literatura tem a fama de ser a mais barata das artes, porque qualquer indivíduo alfabetizado pode produzi-la a partir de um caderno e uma caneta — mas nada é tão ilusório quanto esta imagem. A literatura não se produz no ato da escrita, solitário e precário, mas no da publicação. Mesmo assim, existem diversos recortes restritivos que afetam-na. Nem todos no Brasil são alfabetizados, cadernos e canetas, apesar de baratos, ainda têm um custo, e existe um peso social sobre o ato da escrita, que é bem difícil de avaliar.
Na prática, a literatura que realmente se conhece não é aquela que se faz, mas um subconjunto dela. Esse subconjunto é o que foi analisado pela referida pesquisa, e são esses resultados que vale a pena discutir. Um dos argumentos utilizados pelos detratores da pesquisa é que a literatura sempre foi assim, mas o apelo à antiguidade é uma falácia argumentativa imperdoável. Não é porque as coisas “sempre foram assim” que elas têm de obrigatoriamente se manterem assim para sempre.
Romper essa barreira que afasta da literatura aquela que é a maior parte da população brasileira pode ser um passo importante para revitalizar nossa produção literária e para incrementar a eficiência de nosso sistema educacional.
É inaceitável que a imagem do Brasil para o mundo, criada através de nossa literatura, seja tão distante da imagem real do país e tão próxima da visão preconceituosa que nossas elites têm de nosso próprio povo. Eu mesmo já disse em outras oportunidades que o Brasil é um dos poucos países do mundo que produz literatura exótica sobre si mesmo.
Os resultados da pesquisa feita pela UnB evidenciam não somente a divisão de classes de nossa sociedade, mas também a profunda ignorância de nossos produtores de cultura, dada a baixa prevalência da ambientação histórica. O autor brasileiro tem o péssimo hábito de só escrever sobre si.
Segundo a pesquisa, cerca de 7 em 10 romances publicados no Brasil entre 1990 e 2004 foram escritos por homens. Não é surpresa que assim seja, porque grande parte de nossos autores pagam para publicar ou publicam por causa da fama que obtêm previamente como políticos, personalidades televisivas, esportistas ou praticantes de outras formas de arte. Em um país ainda fortemente patriarcal, é natural que somente o chefe da família tenha o poder de custear uma aventura literária ou seja levado a sério nessa empreitada. A mulher tem menos facilidades para pagar sua publicação porque menos mulheres possuem independência financeira e porque não são tão levadas a sério.
A necessidade de custear a autopublicação, ou de, alternativamente, obter o reconhecimento prévio em outro campo para legitimar a edição, é a causa central de 9 em cada 10 autores das citadas obras serem brancos. Nosso apartheid racial fica explícito porque somente os detentores de poder econômico conseguem entrar e prosseguir com sucesso no ramo literário — e desses a maioria são brancos porque a elite é branca, por mais que esperneiem os negadores do óbvio.
Esses autores escrevem sobre a metrópole (em geral Rio ou São Paulo) por vários motivos. A própria ignorância do resto do Brasil é um deles, visto que a elite brasileira viaja mais à Europa ou à América do Norte do que ao interior do próprio estado em que vive. Não querendo escrever sobre outros países, essa elite confunde o Brasil com aqueles poucos quilômetros quadrados dele que conhecem. Um segundo motivo é que a maioria do público consumidor da literatura também está no eixo Rio-São Paulo e se interessa mais por Nárnia do que por Tocantins. Então, quando os autores vão escrever sobre o Brasil, é mais fácil para eles ambientar sua ficção na Terra de Marlboro do que a 100 quilômetros de sua casa no centro de uma das duas metrópoles nacionais. O público leitor se interessará por uma literatura em que se reconheça ou por uma literatura à qual tenha sido condicionado. O brasileiro médio se reconhece na própria cidade, mas não em outras regiões do país. Um paulista ou carioca encara um nordestino ou um amazonense mais ou menos da mesma forma que um angolano ou um moçambicano.
A crueldade disto é que não apenas os autores não escrevem sobre o resto do país como o público também não se interessa, o que condena os escritores de todas as demais regiões do país a um papel estritamente regional. Um leitor carioca ou paulista dificilmente lerá uma obra ambientada no interior de Minas Gerais, quanto menos do Piauí. E quem me disse isso foi um editor, que simplesmente me recomendou que eu me mudasse para o Rio e passasse a fazer fantasia urbana para emplacar minha literatura, porque, em suas palavras, eu tinha talento, mas enquanto vivesse e escrevesse no interior de Minas eu não teria futuro.
Quase três quartos dos romances narram histórias ambientadas entre o fim da ditadura e as primeiras duas décadas da redemocratização. Isso reflete a falta de familiaridade do autor brasileiro com a História. Escrever ficção histórica requer pesquisa. Mais que isso, requer conhecimento internalizado, para o produto não ficar artificial. O público tampouco se interessa, porque faz parte de nosso sistema de ensino depreciar o estudo do passado, a fim de que o povo continue ignorante e fácil de manipular. O efeito secundário disso é a literatura não ter um caminho para trabalhar gêneros como a ficção histórica, nem mesmo transversalmente.
Finalmente, a maior parte dos protagonistas são espectadores da história, e não seus artífices. Jornalistas, artistas plásticos ou escritores são as profissões mais frequentes de nossos heróis literários, refletindo o desprezo secular de nossas elites pelo trabalho manual e a tendência oligofrênica de nossa literatura de falar muito sobre si e pouco sobre o mundo em que está inserida.
Disso resulta uma visão exótica da realidade, que é vista como o cenário do protagonista, quase sempre um deslocado, e não como um elemento central da trama. O negro e a mulher aparecem em papeis subalternos porque são mostrados pela ótica do homem e do branco.
Por isso eu fico razoavelmente animado quando ouço falar no debate sobre o “lugar de fala” e tenho esperanças de que ele vá além do falatório vazio e da condenação daqueles que estão fazendo. Eu queria, muito, que essa gente que propõe esse conceito botasse a mão na massa. Há muita história boa para ser contada nesse mundo, histórias que não foram vividas por jornalistas brancos do eixo Rio-São Paulo nos últimos trinta anos. Não tenho medo do debate sobre o lugar de fala porque ele é bom para mim. Afinal, embora homem e branco, eu não estou no eixo Rio-São Paulo e não estou escrevendo sobre jornalistas deslocados durante a redemocratização do Brasil. Em pelo menos um ou dois pontos esse debate me beneficia.
O problema é que, como quase sempre acontece com os “cagadores de regra”, há mais censura a quem faz do que proposta de algo novo. Eu estou cansado de ouvir falar mal desse homem branco opressor que navega por nossa realidade como um visitante de outro planeta. Seria bom que começassem a me mandar links das histórias escritas por negros e índios, mulheres e travestis, gente de todos os cantos e raças, visões novas e originais de nosso país e do mundo.
Sim, gente. Eu estou curioso sobre essas obras. Quero saber o que essa gente diferente de mim pensa e escreve. Sei que estas obras não estão nas grandes editoras, mas no Wattpad, no Kindle e nos blogs. Se você é um defensor do lugar de fala, então FALE, CARALHO! Sinceramente, eu já estou cheio de histórias iguaizinhas, envolvendo Nárnia, Nova Iorque e adolescentes excepcionais de cabelos louros. Já tenho nojo de jornalistas cariocas explorando favelas, de artistas conceituais enfrentando as ruas. Onde estão vocês, diferentes vozes da literatura nacional? Onde estais, que não respondes?
Não me culpem por não ouvir-vos. Eu estou aqui perdido no interior de Minas Gerais, como vários de vocês se sentem perdidos em um mundo que não vos escuta. Tal como vocês falam e não são ouvidos, eu tento escutar e quase nunca ouço. Seria ótimo se todos nós parássemos de brigar uns com os outros e começássemos a falar uns dos outros. Quero ler você, resenhar você, recomendar você. Assim como quero que você me leia, me resenhe e me recomende.
Não acho certo silenciarmos os que fazem a maioria da literatura nacional, temos é que fazer crescer nossa parte do bolo. Isso faremos com trabalho positivo: mostrando, divulgando, conversando, resenhando, SOMANDO. A ideia não é derrubar quem tá de pé, mas subirmos uns nos ombros dos outros.
O debate sobre o lugar de fala oferece uma grande oportunidade de mudar o panorama chato da literatura nacional. Mas isso não será feito com mimimimi nas redes sociais, mas PRODUZINDO e DIVULGANDO obras que não sejam mais do mesmo.
Bora fazer isso? Ou é mais fácil fazer textão no Facebook?