Há quem diga que muitos projetos literários ficam inacabados porque falta incentivo. Discordo frontalmente. Incentivo jamais existiu, pelo menos não no Brasil. Olhe em torno, conte quantos autores nacionais se tornaram profissionais, vivem efetivamente de literatura. Olhe para trás, conte-os no passado de nossa literatura, leia a biografia dos nossos medalhões, quase todos, com raras exceções, eram amadores, tinham empregos formais, escreviam nas horas vagas.
A ideia de um “mercado literário” não nos pertence. Você não é americano, você não escreve em inglês, você não publica contos na Esquire ou na New Yorker, você não será contratado por uma grande editora para escrever best-sellers. Sua realidade é outra, e você tem que trabalhar com ela, ou continuará quixotescamente enfrentando moinhos de vento.
A motivação do escritor nacional tem que vir de dentro do peito, da força da raça e da ambição de vencer. Escritor brasileiro rema correnteza acima. Ou você aceita isso e se adequa, ou ficará chorando a falta de um apoio que ninguém jamais recebeu.
Projetos inacabados são falta de várias coisas, como amor ao que faz: “ai, só vou escrever mais se vocês me amarem. Não digam que tá ruim senão eu paro. Ai, isso dói, gente.”
Se você se propõe a escrever somente se for elogiado a cada passo, o meu conselho é que pare agora, e pare de uma vez para nunca mais começar de novo. Saia dessa ilusão e vá capinar lotes.
A primeira coisa que o escritor precisa ter é prazer no seu hobby. Você não é obrigado a escrever, não é escrevendo que você ganha o seu próximo prato de comida. Você não irá preso se não escrever. Então escrever é uma escolha sua. Supõe-se que você escolheu escrever, mesmo que não se lembre quando, porque ao escrever você experimenta algum tipo de sensação positiva.
“Ah, mas eu não escrevo por hobby, eu sou profissional.”
Não, você não é. Antes de ter contrato com editora e ganhar regularmente o mínimo bastante para o aluguel, o mercado, a farmácia e a gasolina você não é mais que um amador.
“Ah, eu posso não ser ainda, mas eu quero ser.”
Se não mudar de atitude, nunca será. As pessoas escolhem carreiras por uma combinação de inclinação natural, prazer e perspectiva profissional. Se não sente nenhum prazer na escrita, por que deseja se tornar profissional nisso? Convenhamos, perspectiva profissional nós dois estamos cansados de saber que essa carreira oferece somente para uns poucos. Considere a possibilidade de caçar outra carreira qualquer; capinando lotes, por exemplo; e seguir como amador. A única coisa que tem a perder é a empáfia de se sentir superior por se dizer “profissional”, mas humildade constrói o caráter do ser humano. Seje menas…
Outra coisa que leva a muitos projetos inacabados é a ilusão do talento. Quem se ilude achando que tem talento acha que incentivo é algo que vem naturalmente. Então espera achar uma editora que o contrate por um salário de ator da Globo e com direito a entrevista na tevê. No mínimo, espera publicar livros e ganhar concursos, viajar o mundo, ter muitos amigos e amantes e dar autógrafos. Você só pensa na literatura como meio de conseguir tais coisas, se elas não vêm, você não se sente incentivado.
Se você sente prazer no que faz e não está preso a essa ilusão de grandeza, sejamos sinceros, você não tem a quem culpar. Não existe nenhum motivo pelo qual não conclui seus projetos literários. Se fosse um escultor que dependesse de determinado tipo de mármore, poderia dizer que não esculpe por falta de matéria prima. Se fosse um pintor de quadros, poderia pintar menos por causa do preço da tela, da tina ou dos pincéis. Se fosse um arquiteto, teria menos obras por falta de clientes dispostos a construir suas ideias.
Mas, não. Você é um escritor, caramba! Qual é a sua matéria prima? Ideias, ideias somente. Os escritores do passado ainda dependiam de meios físicos que tinham um custo (pergaminho, papiro, cadernos, estilos, penas, canetas). Mas você não. Você vive na era da informática e escreve sobre a tela virtual de um computador. Considerando que você está aqui me lendo, isto significa que você já fez esse investimento.
O computador elimina todo custo adicional do ato de escrever. Até mesmo serviços virtuais para armazenar seu texto você pode ter, como o Google Drive e o Dropbox. Você sequer precisa de um software específico, ao contrário dos arquitetos e engenheiros, que têm de comprar AutoCad por um preço de milhares de golpinhos. Para você, qualquer programa de edição de textos serve, até o Bloco de Notas.
Com o computador e acesso à internet para fazer as pesquisas, você não precisa de uma biblioteca de volumes arcanos em latim, búlgaro, alemão ou francês. Você não precisa de dicionários de chinês-hebraico ou holandês-russo. Não precisa do sangue de meninas virgens para sacrificar a Shub-Niggurath quando os astros estiverem corretos.
Não, caramba! a única coisa de que você precisa é sentar na frente do computador e escrever o que quer escrever. Não há nenhum custo de matéria prima limitando sua produção. Não há nenhum cliente cujo gosto condiciona sua criação. Não há nenhum mecanismo invisível de bloqueio. Você é livre diante da tela.
Talvez por isso a síndrome da página em branco.
A página em branco está ali a acusá-lo: “nada o impede de escrever, a não ser você mesmo.” Como a esfinge ela exige: “Decifra-me ou te devoro.”
Não há desculpas. Não é por falta de incentivo, de dinheiro ou de tempo. Você não conclui seus projetos porque não quer, porque não sabe ou porque está perdido.
Não quer, porque você não liga de verdade para a literatura, é só uma modinha. Daqui a dois anos você estará ligado em mangás ou em maquiagem de defuntos. Como é só uma modinha, você não se dedica realmente. Você chega tarde do trabalho e prefere jogar on line ou ir paquerar. Escrever fica lá embaixo na sua lista de prioridades.
Não sabe, porque não está seguindo os passos naturais que todo mundo recomendou, mas você não seguiu porque se acha um gênio que não precisa começar praticando os gêneros “menores”, como a crônica e o conto. Gênios já começam escrevendo um rival para o Senhor dos Anéis ou desbancando o contrato de George R. R. Martin.
Está perdido, porque você tem uma visão romântica da literatura, que seria um quarto bagunçado onde você pode expressar sua alma e nenhuma mãe mandará arrumar. Então você se recusa a admitir que para fazer alguma coisa em literatura, por mais que seja algo “nascido da alma”, é preciso algum sistema, precisa organização, precisa de trabalho.
Você pode continuar lamentando, mimimimimi, ou achando desculpas. Haverá sempre muita gente para dar likes nas suas reclamações. Muitas dessas pessoas são outros perdidos, que logo abandonarão o barco da literatura sem ter produzido nada de legível. Reclamar atrai simpatia, mas não produz resultados.
A menos que você esteja conformado com o lento esvaziar de sua motivação, por falta de alguém que periodicamente venha com uma bomba de “apoio” comprimido para calibrar sua força de vontade, você tem que mudar de atitude.
O fato de você não estar terminando seus projetos é um sintoma. A doença é a falta de método. Algum método. Não precisa ser o meu e nem o daquele carinha que cagou lindas regras dia desses. Algum método. Não se monta um mecanismo atirando as peças aleatoriamente. Uma obra literária é um produto, e todo produto é fruto de um processo. Anárquico que seja, mas há um processo.
A cura para essa doença você aprende em um samba. “Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima.” Primeiro pare o que está fazendo, porque está errado. Se estivesse certo você estaria terminando seus projetos. Então não retruque. Se você estivesse terminando seus projetos você nem teria lido até aqui, então não estaria retrucando.
Parou? Agora olhe em volta, aprenda sobre seu país, seu lugar no mundo, sua cultura e suas limitações (geográficas, políticas, econômicas e culturais). Não é para lamentar, é para mapear seu caminho. Você não venda os olhos e anda em linha reta pelas ruas de uma cidade desconhecida. A menos que queira suicidar-se. Sabendo sua inserção no mundo, comece a pensar em achar seu nicho, seu lugar, o rego d’água através do qual você sairá do brejo e chegará ao rio.
Esse processo envolve ler bastante. Se você tivesse lido o suficiente (e lido os livros certos) você já teria atingido o nível de compreensão necessário para orientar-se, você já estaria com uma atitude diferente, e estaria terminando as suas obras. Não que haja algum mal em ter lido os livros errados. Livros errados também são bons. Só que você também precisa ler os certos, os úteis, os que te orientam. Todo bom escritor é um leitor onívoro. Ler de tudo significa aprender muitas coisas, ter muitos lugares de onde tirar ideias.
Resumindo tudo que está dito nos parágrafos anteriores: é hora de parar um pouco de dar murro em ponta de faca e começar a levar a literatura a sério. É hora de crescer. É hora de parar de pensar como adolescente autor de fan-fic e começar a se imaginar como alguém que provavelmente viverá uma longa vida a escrever, mesmo que não consiga logo o reconhecimento, mesmo que ele nunca venha. Porque, afinal, você não escreve para ganhar prêmios, para ter amantes ou para se tornar milionário. Você escreve porque gosta, escolheu escrever porque isto o satisfaz
Levar literatura a sério não é “profissionalizar-se”. A maioria dos profissionais faz sua atividade sem alma alguma, só pelo dinheiro. É ao dinheiro que eles levam a sério, não a atividade. Levar literatura a sério é tomar pé de seu lugar no mundo, começar a ler ativamente, ter boa cultura literária, buscar escrever bem e escolher boas leituras (em vez daqueles artigos que ensinam os “atalhos” e as “dicas” para ir do ponto A ao ponto Y sem passar sequer pelo ponto B). Começa por evoluir sua escrita gradualmente, pois você não nasceu gênio (ou já teria, a essa altura, produzido algo digno de um Byron, um Rimbaud ou um Radiguet, em vez dessas poesias toscas e desses romances inacabados que nem você tem paciência para ler a fim de revisar). E termina por admitir que escrever é uma atividade que, embora não se resuma a encaixar peças e apertar parafusos, exige método e processo, assim como qualquer outra.
Não há nenhuma quantidade de mimimimi em todo o universo que mude o fato de que você não avança com seus projetos simplesmente porque não quer, não sabe ou está perdido. Você só sai desse brejo se mudar de atitude. Você está lá atolado e as pessoas passam e lhe atiram flores ou dizem “coitado”. Quem você prefere? Estes “incentivos” ou as pessoas que lhe mandam andar em determinada direção, às vezes atirando uma corda para ajudar? Você quer que se compadeçam e que simpatizem com você, ou quer sair do brejo?
Você me odeia agora, mas se seguir a escrever, e o fizer do jeito certo, quando chegar aos quarenta ou cinquenta você se lembrará deste texto, eu provavelmente já estarei morto, e então você me amará.
Boa noite.