No mundo em que vivemos, a liberdade pessoal é posta como prioridade e o descarte do outro “defeituoso” é uma coisa normal. Não é surpresa que a revista “Estilo” resolva glamourizar o abandono como uma coisa saudável. Se o outro vem “com defeito”, nada mais normal que descartá-lo, trocar por outro produto.
Assim o ser humano se desumaniza, reduzido a algo que se adquire, que se usa e que se substitui. Com a ajuda de psicólogos, porque a culpa atávica ainda reside em algum lugar da alma, e precisa ser exorcizada, para que possamos viver a liberdade conquistada pelo “amor-próprio” — novo nome do egoísmo.
A liberdade é sempre relativa. A partir de um certo ponto a liberdade se torna “fuga da responsabilidade”. A ilusão de viver sem consequências.
Quando crianças, sonhávamos a ilusão de viver assim, sem enfrentar o retorno do que fizéssemos.
Transar sem gravidez, beber sem cirrose, ser calhordas e ainda ser amados, gritar com os outros sem levar um tapão, dar o tapão sem levar um soco ou um pipoco, usar droga sem overdose, acelerar a 160 sem morrer numa esquina fechada ou contra-mão inesperada.
Crianças inicialmente não sabem que existe o outro enquanto pessoa. Ele é somente fornecedor do que queremos ou impositor do que rejeitamos.
Exigimos o peito de nossa mãe. Choramos para que nos troquem fralda, gritamos para que nos tragam a comida. O outro nos traz o feijão, o banho, a hora de dormir a escola.
Achamos que crescer é saciar o que queremos, sem sofrer mais com o que o mundo impõe e limita.
A realidade é o boleto, a nossa vez de trocar a fralda, o patrão mais mandão que o pai, a igreja pedindo mais bênção que a vó.
Algumas escravidões conseguimos sacudir de nossas costas, mas algumas não podemos — outras não devemos.
Morta a vó lamentamos cada bênção não pedida. Esse é um boleto que nunca vamos pagar.
Alguns evitam filhos, na verdade querem evitar a sua vez de trocar a fralda, porque, por mais que se pague babá para isso, haverá madrugadas de diarreia e febre, nas quais não será possível terceirizar a maternidade e a paternidade.
O tempo traz a doença que teria sido evitada pelo feijão da infância, que foi semeada pelas ressacas repetidas e pelas drogas recreativas.
E a solidão que não existiria se não atacássemos quem estava perto.
Porém, mesmo essas reações e arrependimentos são limites e imposições com que o destino entristece as crianças. Já sem pais que lhes obriguem, mas com dinheiro para comprar confortos, anseiam pela “soma”, pagam psicólogos, desenvolvem explicações complicadas para disfarçar a culpa, e revestir o arrependimento.
Nosso tempo conhece agora o herói que vence a humanidade. Os heróis de antanho matavam monstros. Os heróis de agora identificam-se com os monstros. Os monstros de antigamente desprezavam e destruíam a humanidade e sua sociedade. Hoje, monstro é quem espera uma sociedade funcional, baseada na mútua responsabilidade.
Porque responsabilidade é imposição.
Portanto é ditadura, portanto é heroico insurgir-se contra ela.
O herói moderno é essencialmente um indivíduo irresponsável.