A revista “Veja”, talvez movida pelo incômodo que causa o fato de que a maior figura de nossa literatura é um negro, Machado de Assis, resolveu se lembrar esta semana que o conceito de “genialidade” é uma construção social.
Claro que esta preocupação não seria necessária se Joaquim Maria Machado de Assis tivesse melenas castanhas e olhos azuis, ou se o movimento negro não resolvesse reivindicá-lo. A proliferação de imagens nas quais o grande “bruxo” aparece com seus traços afro devidamente enfatizados começou a incomodar a revista que é praticamente a porta-voz de nossa elite escravocrata. O fato de que o autor começou, também, a despertar a atenção de leitores e críticos estrangeiros, com a saída das primeiras boas traduções de sua obra para o inglês, deve ter desempenhado também um papel nessa preocupação.
“Veja” iniciou então um projeto de desconstrução de Machado de Assis enquanto ídolo nacional. Podem escrever o que digo, não vai parar por aqui. Ainda veremos muitos artigos assinados por expoentes da “nova” direita nacional contendo micro-ataques ao autor, enquanto literato, enquanto cidadão e até enquanto homem. Talvez tenham até uma meta: em dez anos faremos esse mulato insolente desaparecer da lembrança, aproveitando que os livros de Machado já são praticamente ilegíveis pelas gerações de alunos deseducados por um sistema escolar cuidadosamente planejado para adestrar sem educar.
Esse projeto, claro, é parte da estratégia de guerra contra a cultura nacional que é movida por setores “globalizados” desde há pelo menos uns vinte anos. É preciso destruir os laços do povo com sua história e sua cultura, para que ele seja mais receptivo à cultura de massas e mais fácil de alienar.
O artigo é um primor de semiótica, a começar pelo título insolente, típico da “Veja” e seus mal-educados “Guias políticamente Incorretos”, que tasca a afirmação de “Machado de Assis era gênio coisa nenhuma”. Para ilustrar essa acusação, a imagem escolhida foi, claro, uma em que Machado aparece com traços claramente miscigenados (se bem que ele não tinha uma carapinha, certamente tinha os lábios largos e o cabelo mais rebelde que o gosto europeu tolerava).
Com seus sete breves parágrafos (a profundidade de um pires tentando conter uma avaliação geral da obra de um dos maiores ficcionistas de língua portuguesa), a matéria tem um subtítulo que deveria causar riso, mas o leitor típico da revista não tem a capacidade da ironia e provavelmente o lerá como uma afirmação dotada de algum valor: “O maior escritor brasileiro de todos os tempos começou publicando plágios medíocres de Gonçalves Dias”.
O absurdo do subtítulo é acintoso. Dá a entender que Machado só poderia ser considerado um gênio se já tivesse começado a escrever com obras de valor incontestável. Afinal, os gênios não têm o direito de ser meninos.
O texto começa com uma frase de George Bernard Shaw, a regulamentar referência gringa que, na ótica vira-latas dos “Guias políticamente Incorretos”, é sempre usada para diminuir algum aspecto da cultura nacional ou latino-americana. Nós precisamos ser explicados por ingleses, afinal.
Em seguida o autor comete um espantalho ousado, mas que, mais uma vez, escapará ao radar do típico leitor que se apascenta nas páginas da revista: afirma que Machado de Assis vem sendo chamado de gênio na televisão, na boca dos professores (essa maldita classe, culpada de tudo de ruim que acontece nesse país), na imprensa e até em artigos e livros acadêmicos (onde, que absurdo, não se deveria discutir com seriedade, muito menos com admiração, um autor afro-brasileiro, claro!).
Fica parecendo que a maneira como Machado de Assis é visto por algumas pessoas representa o valor real do que ele escreveu e do que ele significa, para a cultura nacional e para o movimento negro. O autor não se dá ao trabalho de, em suas poucas linhas, sequer citar se há estatísticas dessa visão de Machado como gênio, mas suponho que não o faria mesmo se as tivesse, pois o objetivo da afirmação aqui é meramente pregar o rótulo no autor para arrancar com força e ver se dói.
Como se não bastasse o desfile já extenso de absurdos, o autor recorre a um dicionário (!) para obter uma definição corriqueira de “genialidade” a fim de atacar. Segundo a definição que ele desencavou, gênio é “pessoa que possui aptidão natural para algo”. Atenção a esta palavra assinalada, pois é com base nela que o articulista ataca Machado de Assis. “Aí é que está o problema;” — diz ele — “dom e aptidão natural são conceitos que difundem a ideia de que Machado e outros ícones já nasceram prontos.”
Ele poderia ter recorrido a uma enciclopédia, mesmo à Wikipédia, e lá teria encontrado uma definição mais correta de “gênio”, como, por exemplo: “pessoa com grande capacidade mental. Ela pode se manifestar por um intelecto de primeira grandeza, ou um talento criativo fora do comum.”
Observe nessa definição que a “grande capacidade mental” não é um fator dado, mas uma conclusão a partir de manifestações de “intelecto de primeira grandeza” ou de “talento criativo fora do comum”. Não consigo imaginar nenhuma maneira através da qual se possa negar que Machado de Assis, ao escrever os livros que escreveu, ainda mais partindo da origem humilde que teve e enfrentando na vida os percalços que enfrentou, manifestou um “talento criativo fora do comum”. No mínimo ele se encontra várias prateleiras acima do articulista da “Veja”, por exemplo.
A ideia de que a genialidade é algo inato é um conceito arcaico que quase ninguém mais usa, mas que o articulista achou útil para usar como arma contra a admiração geral pelo nosso maior escritor de ficção. É um conceito que faz parte da concepção vulgar de genialidade, à qual também o artigo recorre, citando um provérbio (pouquíssimo conhecido) segundo o qual “o que é bom vem do ovo”.
Claro que o articulista não tem gabarito para atacar impunemente a Machado de Assis, então ele precisa terminar o texto de forma conciliadora. Esse é, aliás, o estilo “Veja”, morder e depois assoprar. Os parágrafos finais repetem, sem entusiasmo, alguns dos chavões mais conhecidos, como:
Ao contrário do que supõem os que acreditam em genialidades e afins, a literatura de Machado amadureceu aos poucos, com tempo, estudo e paciência.
ou, mais pusilânime ainda:
Se é verdade que possuía uma inclinação para a palavra escrita, não é menos verdadeiro que, com muito esforço, fez essa inclinação evoluir a níveis até então inatingíveis. Esse é o maior legado de Machado aos estudantes brasileiros. Sua arte e sua história nos mostram que tudo é possível, apesar das adversidades pessoais e do clima cultural pouco frutífero em que vivia/vive o nosso país.
Esta conclusão começa pondo em dúvida a inclinação de Machado para a palavra escrita, com aquele “Se” bem marotinho ali no começo, para depois usar o caso dele como (mais um) esforço de propaganda da meritocriacia. “Com muito esforço” é que ele se tornou quem se tornou. “Sua arte e sua história nos mostram que tudo é possível, apesar das adversidades”.
A caminhada do autor até os píncaros da literatura não foi favorecida por ser filho de pai branco, por ter obtido um emprego em tipografia, por ter feito amizade com o próprio diretor da Imprensa Nacional, Manuel Antônio de Almeida e por ter, posteriormente, se casado com uma mulher branca e de razoável status social. Tudo foi apenas “muito esforço”.
Um discurso de autoajuda, é a isso que reduziram a biografia de Machado de Assis!