Já lhe contei há dias, ou anos, que cada vez é mais difícil asseverar, que fui visitado, em uma noite escura e tempestuosa, por Epidermion, Kindy Káfti, Koilos Kéfalis e Anoitos Kákos, respectivamente o rei e três cidadãos do reino de Agnoias. Quando saíram pela porta; me deixando só com a dor de uma mão ferida, de um chute dado na porta e de um beijo roubado no escuro; senti-me determinado a descobrir o que tinham em mente ao roubarem o pendrive vermelho onde eu salvara aquela que supunha ser a única cópia de segurança de “A Espada de Aníkanos”, vergonhoso romance de fantasia medieval que eu abandonara na adolescência.
Desde então eu me passei a vasculhar os poeirentos recantos de meus discos rígidos e mídias de backup em busca de cópias mais antigas do livro, para me refrescar a memória sobre o conteúdo original e tentar entender se alguma coisa nova acontecesse, como, por exemplo, alguém publicar história parecida. Minha dificuldade é que alguém já publicara algo semelhante antes — e eu copiara.
Vinte dias depois do roubo do pendrive vermelho eu encontrei, em uma comunidade de criadores de tretas literárias, o que parecia ser o argumento do prólogo de meu romance abortado: a história do rapto e violação de Evra Speleas, princesa de Proctos e noiva de Epidermion, rei ainda incoroado de Agnoias. Disse que “parecia” porque havia duas mudanças significativas na história: a primeira era que os raptores não eram mais os bárbaros canibais da Ilha de Makria Peous a serviço da Feiticeira Feia de Istos, mas… os bárbaros musculosos e atléticos da Ilha de Makria Peous. A segunda era que em vez de raptarem a rotunda Evra, levavam Kindy Káftis, a bruxa local (essa era uma terceira alteração) a quem salvavam da execução na roda. Parei de ler quando o conto de fantasia e vingança começou a se encaminhar a direções impublicáveis em um blogue como esse.
O estilo narrativo não era significativamente melhor que o meu aos dezessete anos, mas o narrador daquilo tinha coragem de descer a detalhes que nenhum curioso pergunta. Claro que, por isso, a obra foi enxovalhada ao extremo, merecendo memes e a ignomínia. Mas, vinte e três dias depois surgiu um sítio contendo não somente o prólogo, que crescera até se tornar uma novela independente, mas também outros textos, como as aventuras de Anoitos e seu amigo Prolapsos na terra dos feiticeiros Cuculos, um clássico comparável à aventura de Juninhuuu no amistoso internacional contra o Boca Juniors — texto que, em nome de sua sanidade mental, caro leitor, eu espero que tenha desaparecido da internet. Sem deixar sequer uma gota de sentido. Enquanto lia essa história eu pigarreava e cuspia. Gastei uma garrafa de enxaguante bucal naquele dia terrível — e ainda não superei todo o trauma.
Por sorte tenho um primo na Polícia Federal. Denunciei o site ao SaferNet e lhe pedi ajuda para identificar os meliantes que plagiavam o meu lindo plágio de Guerra dos Tronos. Ele me visitou em uma noite clara e de céu limpo (era lua cheia, daí a claridade anticlimática) e disse que não poderia me ajudar formalmente, apenas me deu uns nomes e endereços.
Dirigi até a Cidade Grande e fui em busca do primeiro dos lugares: A:R:C deveria ser o Açougue Rosa-Choque. A senha que meu primo meganha me disse para usar era “rabada”. Tive vergonha de dizer isso e pedi “alcatra”. A mocinha recatada que retalhava as carnes com uma faca maior que o meu antebraço perguntou quanto eu queria. Daí lembrei da senha exata: um quilo e setecentas gramas.
— É muita carne. Vai convidar muita gente para comer nesse domingo?
“Ai, caralho, eis que já estrago tudo ao não saber o que dizer.”
Disse nada, só dei um sorriso que entortou no meio me fazendo parecer um pervertido. A mocinha sorriu de volta e perguntou se eu queria “algo a mais”. Claro que eu queria, e disse que sim. Ela empacotou também um quilo de linguiça.
O nome era esquisito, mas o lugar não era ali. Era o 22-A, não 224. Soube disso quando entrei no carro carregando mais carne do que comeria em um mês e o número do telefone da mocinha miúda. Eu jamais teria coragem de namorar uma açougueira. A imagem daquela faca encontrando a minha carne durante a noite me perseguirá até a tumba, e talvez além, mesmo sem eu ter mais carne.
“Mas, por que diabos alguém daria a um açougue um nome desses? E por que a confusão?”
Li de novo o endereço e notei a caligrafia do 4 parecendo um A. Fui procurar. Achei o 22-4, onde ficava o Armazém da Reforma e da Construção. Nome horrível, forçado numa sigla. Muito depois soube porque. No fim não conto, ou talvez.
Bati à porta.
— Rabada.
Meu sotaque me traiu. Devo ter tido algo mais parecido com “rabuda”. Veio uma mulher alta e voluputosa, com duas feias verrugas na cara. Kindy Káfti. Exceto que as verrugas não estavam.
— Ele nos descobriu! — Ela gritou para alguém dentro da casa.
Não era nenhum dos outros três. Eram dois altos e ruivos, corpulentos… como bárbaros da Ilha de Makris Peous.
— Mas…
— Não está mais aqui, ó criador. Reescrevi a minha história e repassei a Ferramenta ao Anoitos.
Tive nojo de procurar o asqueroso vilão para lhe perguntar a quem repassaria o pendrive. Eu preferia perder a pista do que as pregas. Resolvi monitorar Epidermion. Algo me dizia que Anoitos, tortuoso de ideias como era, quebraria a hierarquia e trataria do rei antes do mago, só para não seguir a lógica.
O endereço era de uma loja de carros usados: “Rei Veículos”. Minha inspiração, minha coragem e a minha vontade de saber o que acontecia estavam no fim, perseguidas pelo cansaço e pelo sono que nenhum café matava.
Epidermion estava de terno, e isto não combinava nada com a sua basta cabeleira, que formava um capacete em torno de sua cabeça. Ele parecia um personagem de um antigo filme sobre gangsters negros de Nova York.
— Não está mais comigo, Criador. Passamos-lhe a perna. E nem adianta procurar com o Anoitos.
— Você não imagina o tamanho da felicidade que as suas últimas palavras me trazem.
Epidermion não entendeu. A profundidade do reaciocínio o derrotou.
— Está mentindo, Epidermion. A sua história ainda não saiu, nem a de Koilos. E algo me diz que está contigo.
Ele gesticulou para seus seguranças. Nesse momento eu retirei do bolso o meu telemóvel, onde havia salvado a antiga cópia do Dropbox.
— Eu não faria isso, se fosse você, Epidermion. Se não cooperar comigo eu abro o arquivo original e restauro a versão anterior.
Meu blefe funcionou. Ele mandou que os capangas se detivessem. Então mudou as ordens:
— Destruam o celular antes que ele use!
Tentei virar para fugir, mas havia seguranças fechando a porta. Num ato de desespero, atirei o aparelho pela greta da janela, confiando na proteção de borracha. Lá fora uma mulher de ancas largas como as de uma centaura bípede o apanhou no ar.
— Obrigado, Evra. Devolva-me para que possamos salvar tudo o que mudamos em nossas vidas!
— Desculpe-me — ela disse — Mas o criador tem uma proposta melhor.
A última coisa que Epidermion disse naquele dia foi um longo “Nããããão” desses de filme de terror. Evra acionou o ícone e restaurou na nuvem a versão local do arquivo. Aquela em que todos estavam de volta a Agnoias e Evra era raptada do palácio e levada para ser a rainha deusa dos bárbaros de Makris Peous.
Mas, por via das dúvidas, para evitar recorrências, resolvi deletar todas as cópias do arquivo depois.