Você já parou para pensar que algumas pinturas parecem um monte de rabiscos ou manchas de tinta que até uma criança seria capaz de fazer, mas são, ainda assim, valorizadas em milhares ou milhões? Ao mesmo tempo, você já se deu conta de que há artistas que produzem obras de uma incrível beleza, mas estão nas esquinas das grandes cidades, vendendo-as por trocados em vez de terem o devido reconhecimento?
Se você alguma vez já pensou assim, saiba que não está sozinho. Muita gente também padece desse mesmo questionamento, isoladamente. Quando a gente começa a trocar ideias sobre arte, descobre que há gente de todos os países, culturas, classes sociais e ideologias que costuma se fazer a mesma pergunta. A universalidade da dúvida indica a relevância da questão: você não é um tosco que não entende de arte, você pode ser como a criança que tem vontade de gritar que o imperador está pelado.
A questão aqui é que pessoas como você e eu não somos o público para o qual a arte é feita. É duro dizer, mas não se ofenda. Tentarei explicar.
A maior parte das obras de “arte” que vemos nos museus ou que são vendidas em leilões particulares se destina ao consumo de gente muito rica, que se acha dotada de um gosto refinado em virtude de sua posição social e que adquire peças de arte para expressar seu poder econômico e sua superioridade cultural.
Esta situação não é nova. O desenvolvimento da arte sempre foi influenciado pelo gosto de pessoas ricas e poderosas. Toda a arte que vemos nos museus ou reproduzida em livros de história reflete o gosto e os interesses de quem pagou para que fosse produzida. O nu artístico, por exemplo, já foi a pornografia de épocas passadas. Sim, aquela obra que hoje você considera uma expressão de elevado refinamento artístico já foi simplesmente a inspiradora da masturbação de um milionário.
A arte que se preservou até nós reflete aquilo que pessoas como o tal milionário punheteiro escolheram financiar ou que aquele colecionador avarento escolheu comprar. Você e eu não somos milionários, portanto o nosso gosto não importa e nós não temos a capacidade de influenciar o desenvolvimento da arte.
Não quero dizer que toda arte é porcaria, porque, afinal, o artista sempre buscou um meio de expressar-se, mesmo quando tinha de atender aos caprichos de um mecenas obtuso. Há valor na arte, mesmo quando foi produzida com a mais rasteira das intenções.
Nas últimas décadas, porém, ocorreram eventos que levaram a arte a uma crise, da qual ela ainda não saiu. Por um lado, o desenvolvimento econômico significou a multiplicação das pessoas em condições de ter acesso à arte. Em séculos passados, somente os nobres podiam encomendar quadros a um artista. Hoje em dia há inúmeros empresários particulares que podem fazê-lo. Nem todos esses novos ricos têm o “refinado gosto” dos antigos nobres. Por outro lado, a popularização da arte levou a uma variedade de estilos, aumentando a oferta de arte e obrigando os interessados a fazer escolhas cada vez mais arriscadas. Por fim, a superação do academicismo derrubou os conceitos (e preconceitos) que mantinham a arte, mesmo aquela produzida para a punheta do milionário pervertido, dentro de certos padrões.
Como resultado disso, quando estudamos a arte dos séculos passados, ou mesmo a das décadas iniciais do século XX, os trabalhos normalmente citados como “obras primas” são mesmo impressionantes. Pode-se dizer que uns são melhores que outros, mas os mestres da arte eram mesmo diferenciados na técnica. Cada década que avançamos no século XX, porém, nos aumenta a sensação de que a técnica foi chutada para escanteio e que a arte agora resulta de um esforço breve e sem comprometimento.
Esse quadro de Joan Miró é um exemplo. Em uma inspeção mais detida, vemos que nenhuma criança de seis anos teria pintado algo assim. Sim, é uma obra abstrata e isso nos desafia intelectualmente a imaginar o que o artista pretendeu, mas é evidente que este quadro possui um estranho senso de harmonia, um equilíbrio de cores, um sentido agudo do belo, ainda que discordemos de… papagaiada.
Os elogios feitos à pintura abstrata costumam ser falsos. Poucos entendem, de fato, o que há de “harmonia”, de “equilíbrio” e de “beleza” em obras do tipo. Então repetem esses lugares-comuns a fim de não parecerem tolos.
Ao longo do século, as obras se tornam cada vez mais difíceis de elogiar, até que chegamos a Jackson Pollock.
É claro que uma criança de seis anos não pintaria isso. Há traços que indicam com certeza uma mão adulta e uma tipo de determinação que revela planejamento (plano de fundo uniforme, conjunto limitado de cores), mas é certo que o esforço físico necessário à produção de tal obra foi superior à “inspiração” e ao “talento” necessários.
A diferença entre um quadro de Jackson Pollock e um quadro semelhante, pintado por alguém que não é Jackson Pollock é difícil de explicar a um leigo porque é uma ficção. Ele se tornou um nome famoso e reconhecido internacionalmente porque recebeu financiamento da CIA. Pollock foi usado como ferramenta política durante a Guerra Fria, para mostrar ao mundo que os EUA eram uma sociedade tolerante e onde questionamentos filosóficos e artísticos eram permitidos — contrastando com a União Soviética e sua rígida política de “realismo socialista” na arte.
Para a CIA, que o financiou, a qualidade artística dos quadros de Pollock era completamente irrelevante. Talvez até lhes interessasse eles serem horríveis porque, quanto mais chocantes fossem, maior o contraste que causariam nos puritanos artistas da URSS.
Uma das razões pelas quais gente como você e eu começou a achar que havia algo de errado com a arte foi esta atitude generalizada segundo a qual a função primordial da produção artística não é mais perseguir o Belo, ou qualquer forma de elevação estética, mas, sim, “chocar”. Não deixa de ser curioso que os mesmos artistas que fazem esta arte provocadora se sintam ofendidos quando a sociedade a que provocam se sente “chocada” com o seu trabalho. É mais ou menos como você dar uma facada em seu amigo e achar um absurdo que ele sangre.
A ideia da arte como uma forma consentida de transgressão faz muito sentido no contexto do capitalismo. Mantidas as estruturas econômicas e políticas, você é livre para “chocar” a sociedade com qualquer objeto irrelevante que, no fim de contas, será comprado por gente rica, dona do poder político e econômico, que o usará para exibir sua tolerância e seu “avanço” cultural.
Por isso eu disse que você e eu não estamos sós.
Pessoas inteligentes costumam ficar pasmadas diante arte moderna e sua capacidade de irrelevância orgulhosa. Quase ninguém corre o risco de dizer abertamente o que pensa, porque, na vida real, os guardas do imperador prenderão a criança assim que ela gritar que o pingolim imperial balouça à vista de todos. Sentir-se desnorteado diante da arte moderna, ou diante de qualquer coisa controversa e nova, não é sintoma de burrice, mas de que você não está intelectualmente morto. Novidades fazem pessoas inteligentes pensarem. Discordar do consenso, seja ele qual for, não é tosquice, é uma função normal de um indivíduo intelectualmente autônomo.
Vejamos um exemplo, ainda que não seja no universo das artes plásticas. Há algum tempo houve aquela controvérsia sobre uma peça de teatro, parcialmente financiada pela Lei Rouanet, intitulada “Macaquinhos”, em que um grupo de doze atores se dedicava, entre outras coisas, a rastejar em círculos pelo palco, todos nus, enfiando os dedos nos cus uns dos outros.
Veja os rostos dessa gente na plateia. Todos estão convencidos de que estão assistindo uma representação artística respeitável, um momento inovador e transgressivo na história da arte. Pouco lhes diz respeito que, fora do teatro, o país esteja em ebulição.
É possível que algumas pessoas desta plateia estejam envergonhadas, que algumas tenham uma vontade grande de ir embora, que outras queiram muito vaiar. Mas a etiqueta social exige que todos se comportem como se assistissem a uma missa no Vaticano. Manifestar-se de maneira “inadequada” nesse contexto levaria ao opróbrio: a voz que se levantar será silenciada pelo riso, tachada de caipira sem educação e de estúpida.
A atitude da plateia diante da arte não foi sempre assim. No passado era comum que o público, se insatisfeito, vaiasse ou mesmo atirasse objetos no palco. Você deve conhecer histórias semelhantes. Hoje em dia esse tipo de coisa somente ocorre, quando ocorre, em eventos de massas, como famoso episódio de Carlinhos Brown no Rock In Rio. Vaiar e atirar objetos ao palco é uma “falta de respeito”, algo que somente gente “sem educação” faz. O público tem que ficar inerte, acatar aquilo que o artista lhe dá.
Quem é Carlinhos Brown, porém, para se sentir no direito de não ser vaiado, quando gente como Stravinsky, Villa-Lobos e João Gilberto já levou tomatadas de plateias indômitas? Quando o compositor russo apresentou pela primeira vez sua peça “A Sagração da Primavera”, a plateia vaiou, impediu a continuidade da apresentação, atirou objetos ao palco e até ameaçou fisicamente os músicos.
Stravinsky não foi o único compositor a ser vaiado, claro. Lembramos dele porque ele se tornou conhecido. Inúmeros outros foram vaiados antes e depois, mas seus nomes não foram preservados porque eles realmente mereceram as vaias.
O público tem o direito de vaiar e de atirar objetos no palco. Estas são, também, formas de expressão artística. São formas de crítica. Quando o público não pode mais discordar, quando é obrigado a aceitar passivamente o trabalho do artista, sem se manifestar, então a crítica começa a morrer, porque logo também o crítico especializado começa a ser tachado de obtuso, intolerante e provinciano.
Na verdade, criticar com sinceridade um trabalho artístico se tornou bastante perigoso, porque, quando um milionário investiu muita grana para comprar um quadro, ele não deseja que esse quadro seja desvalorizado. Assim como você não quer que depredem sua casa, um colecionador de arte não quer que falem mal de suas aquisições.
Isso se refere não somente a artes plásticas, mas também a música. Pois os artistas que estão nas gravadoras foram por elas adquiridos e representam um investimento. Não duvide que, dentro de algumas décadas, falar mal de um artista seja considerado um tipo de vandalismo e punível pela lei.
Por isso a arte está realmente está em crise. Ela perdeu muitas de suas antigas funções para a tecnologia. Não há mais emprego para pintores de retratos nas cortes. Os nobres (cada vez mais raros) preferem ter um fotógrafo. Não há mais trabalho para desenhistas de plantas e animais em expedições científicas. A fotografia é superior pare esse fim também. O teatro não é mais a recriação de uma narrativa — o cinema faz isso melhor. A música não é mais um espetáculo interativo — ela é hoje consumida através de arquivos digitais.
Estamos em uma fase transição, na qual as antigas formas de arte estão morrendo e novas nascem. Algumas das novas formas talvez não vinguem, algumas são tolas, mas outras podem resultar em algo interessante. Se você não imagina onde podem estar os bons pintores de retratos, os ilustradores de histórias, os paisagistas… dá uma olhada em sítios como o DeviantArt. A tela de lona está morrendo e é com tinta digital que o trabalho de hoje se faz.
De qualquer maneira, acho que seria preciso reaprendermos o abuso. Quando as pessoas vaiavam, gritavam e jogavam cerveja nos artistas, eles (os artistas) tinham mais respeito. Reações extremadas indicam um envolvimento maior. As pessoas se ofendiam com a arte porque achavam-na importante e cheia de significado para si. Quando um trabalho as incomodava com desafios estéticos ou conceituais para os quais não se sentiam preparadas, era normal uma reação irritada. Tolerar qualquer coisa na arte significa que não lhe damos nenhum valor real, que esta arte não nos fala ao coração.
Às vezes é preciso que uma criança grite que o Imperador está nu, porque adultos costumam acreditar facilmente em roupas imperiais invisíveis ou na seriedade do fio-terra como expressão artística. Somente uma criança tem coragem de exercer o papel de bobo da corte e zombar daqueles que se acham sérios demais.