Segundo um princípio antigo da sabedoria popular (essa em que cada vez menos acredito), não se deve nunca explicar uma piada. Se o ouvinte não tem bagagem para entendê-la, se sentirá insultado pela explicação. Se tem, mas não a entendeu, se sentira constrangido. Em nenhum dos casos a explicação melhora a piada e sempre fica no ar a dúvida se o problema do entendimento foi por culpa do ouvinte ou do piadista.
Mas há situações em que o desentendimento é tão gritante que a gente precisa procurar uma resposta, em vez de simplesmente aceitar que a piada não funcionou.
Bem, gente, este mês eu participei, pela primeira vez há um bom tempo, de um “desafio literário” do blog Entre Contos. Como sempre, a minha participação é mais pelo desafio de me forçar a escrever algo novo, fora da casinha, do que pelo desejo de vencer um concurso que nem tem prêmio. Serve-me, também, para avaliar como eu alcanço ao público. Raramente participo do Entre Contos, por motivos que expus certa vez e que, cada vez mais, percebo corretos.
Embora eu não tenha entrado pensando em ganhar, nem toda derrota é igual. Há derrotas que decorrem meramente de haver alguém mais merecedor de ganhar, essas são as mais simples e fáceis de aceitar. Mas há derrotas que apontam para outros fatores, mais complicados. A minha derrota no desafio desta vez me deixou com a forte impressão de que a minha literatura não tem mais lugar no mundo — ou, pelo menos, que os leitores do desafio não estão interessados em ler nada parecido com o que escrevo.
Refiro-me, inicialmente, a uma dificuldade generalizada de captar as referências que usei. Não me incomoda que alguém não goste, mas me incomoda ver que a mensagem de meu conto não foi sequer entendida porque o leitor não se apercebeu de referências que eu imaginava que seriam universais.
O protagonista de meu conto é nada menos que Drácula, ele mesmo, sem tirar nem pôr, apenas com o nome trocado. Porém, como parece existir um personagem de história em quadrinhos que também se chama “Drax”, e apesar deste ser totalmente diferente de um vampiro clássico, tanto em personalidade quanto em atributos físicos, alguns leitores cismaram em ver o meu personagem como tentativa fracassada de fazer uma fanfic de um super-herói da Marvel.
Não é como se eu tivesse “disfarçado” o vampirão. O nome “Drax” ainda é suficientemente parecido com “Drácula” e todos os atributos utilizados para descrever o personagem remetem ao vampiro clássico: vive nas sombras, veste uma roupa escura que ninguém mais usa, fala um linguajar antiquado, apresenta-se como alguém secularmente velho, transforma-se em morcego, chupa sangue, transforma as pessoas em outros como ele, hipnotiza seres humanos, é imortal, tem a força de seis homens e se recupera quase instantaneamente de ferimentos. Nenhum sequer destes atributos está presente no super-herói “Drax”. Não obstante, os leitores enxergavam um super-herói da Marvel. Nem mesmo eu pôr na boca do personagem que ele contara sua história, “há mais de cem anos”, a um jornalista irlandês (Bram Stoker) conseguiu fazer com quealguns leitores enxergassem Drácula.
Este fato me deixou profundamente chocado e com uma sensação de injustiça, porque as notas ruins dadas ao meu conto partiram, em sua maioria, dessa dificuldade de perceber o personagem principal como meramente Drácula e as consequências que isto tem para a interpretação da história: o uso de Drácula, especificamente, em vez de um vampiro genérico, tem fins satíricos.
Outro ponto que passou batido, apesar de eu ter forçado a barra no final para mostrar os “anjos” como nazistas, foi que não se trata de arrebatamento nenhum. Para muitos dos leitores, o final é “anticlimático” porque Drax triunfa com excessiva facilidade sobre os “extraterrestres”. Alguns leitores associaram os “prateados” a anjos, mas ninguém deu o passo lógico seguinte, de que a facilidade do triunfo de Drax se deveria precisamente ao fato de o Arrebatamento ser uma encenação, em vez de um acontecimento real (invasão extraterrestre). Houve até quem negativasse a narrativa como “antibíblica” por considerar inverossímil que um ser demoníaco perceba melhor que o “povo de Deus” se o arrebatamento é falso.
Esse texto, amigos, é uma sátira política. Aparentemente, eu vivo em um mundo diferente, no qual existem pessoas que mentem e usam a religião para explorar os outros. Mas esse parece ser um fenômeno desconhecido da maioria, por isso, uma sátira mal disfarçada passou despercebida.
O “arrebatamento” é apenas uma enganação para explorar a credulidade do povo para roubar deles até o que não têm. A máquina prateada é uma literal “máquina de moer gente”. Usar imagem religiosa para roubar o povo é mais antigo que cagar de cócoras. Agora mesmo você deve saber de alguma igreja que está convencendo uma velhinha a doar sua casa para trocar por um terreninho no céu.
Nesse contexto, as pessoas abandonam seus sonhos românticos (Heleninha) e arrastam consigo à destruição quem as ame (Teófilo). Drax é o mal antigo, o mal tradicional, o mal indisfarçado, o mal imemorial que abertamente se coloca contra Deus sem fingir ser Deus. Ele sabe que não se trata do arrebatamento, não porque conhece os sinais do verdadeiro arrebatamento, mas porque reconhece outro esquema de devoramento do povo quando o vê e também porque ele é capaz de farejar o seu “gado”. Ao final ele diz que “não sabe quem são os prateados”, mas não diz que não sabe “o que” são. Ele sabe que são humanos.
Ele não é bem sucedido contra os anjos porque tem poderes excessivos, mas porque os “anjos” na verdade são homens disfarçados, não alienígenas super tecnológicos. Porém, a vitória de Drax é uma vitória de Pirro, porque ele destruiu uma maquina prateada local, mas a história não nos fala quantas há no mundo… Quantas haverá?
A ironia do texto é que não há nele heróis. Há dois tolos (Heleninha e Teófilo) em busca da própria destruição e há um vilão antigo, que deseja impedir que novos vilões se apossem de seu “gado”.
Enfim, este é um conto que dificilmente ganharia, porque os leitores se dividiram entre os que não o entenderam porque não pescaram as referências (a Drácula e às falsas religiões que exploram a credulidade do povo) e os que, se tivessem pescado, ficariam tão ofendidos que dariam uma nota ainda mais baixa.
Mas eu preferia que as pessoas tivessem entendido e reagido com ira do que ficarem tão “por fora” quanto ficaram.
Para mim, isto significou que não consigo mais falar com vocês.