Na qualidade de tradutor amador eu acredito que não há palavras nem expressões que sejam essencialmente intraduzíveis.
Claro que há uma certa dificuldade para se traduzir certas coisas, afinal, traduzir não é fácil, mas é sempre possível conseguir, de alguma maneira. A crença na impossibilidade de se traduzir deriva de uma série de circunstâncias lamentáveis:
- Pressa
- Quando afirmamos que certo texto é intraduzível, elevamos o padrão para a sua tradução de maneira a termos uma desculpa para nem tentar. Tradutores são remunerados de maneira quantitativa (por palavra), o que quer dizer que sua hora de trabalho vale mais quando conseguem traduzir com mais rapidez. Disso resulta que quanto mais difícil de traduzir é um texto, menos dinheiro se ganha ao traduzi-lo.
- Modismos
- É muito frequente que os clientes desejem reaproveitar na língua alvo (no caso, o português) palavras e expressões constantes do original. Isso se faz basicamente por fetichismo: é como se as palavras estrangeiras, imersas no contexto da língua, possuíssem um caráter mágico, de sorte que falar em stakeholders é mais místico do que falar em “partes interessadas”, por exemplo. Disso resulta que muitas palavras e expressões perfeitamente traduzíveis são inseridas no texto alvo como se fossem difíceis, apenas porque os contratantes da tradução desejam mantê-las. Isso é particularmente irritante em obras sobre economia e administração de empresas, onde o uso gratuito de barbarismos léxicos parece pensado para afastar o público em geral.
- Exigência de fidelidade à contagem de palavras
- São vários os termos estrangeiros que requerem mais (ou menos) palavras para uma tradução de seu significado. Em muitos contextos, especialmente tradução de interfaces de programas de computador, mas não somente, existe um espaço predeterminado que o texto deve ocupar, não podendo ser muito maior nem menor. Por causa disso uma tradução mais verbosa será rejeitada, mesmo que exata, e se dirá que o termo é de difícil tradução. Casos de tradução menos verbosa são raros, em geral porque existe uma tendência inercial em crer-se que o português é necessariamente mais verboso do que o inglês.
- Exigência de uniformidade terminológica
- Há casos em que uma mesma palavra possui mais de um significado, e pode ser usada em ambos os sentidos em um mesmo texto.Porém o tradutor (ou quem o contrata) pode não aceitar que a mesma palavra seja traduzida de maneira diferente em contextos diferentes, especialmente se a palavra ou expressão é importante no contexto da obra.Disso podem resultar o calque; uma tradução apressada, que impõe à língua alvo uma estrutura estrangeira; ou a importação de uma nova palavra sem que houvesse necessidade.
- Limitação cultural do tradutor
- Ninguém é especialista em tudo, claro. Se o tradutor está trabalhando com um assunto que não domina, a possibilidade de deixar sem tradução termos específicos que ele não conheça são grandes. O mesmo se aplica quando o tradutor tem pouca vivência da língua real ou algum tipo de limitação literária. Muitas vezes o tradutor humano age como o Google Translate, que deixa para trás os termos e expressões que não consegue entender. Em alguns casos, esses termos ficam ainda mais difíceis de traduzir quando restam isolados entre palavras de outra língua. Cria-se, assim, a tentação de deixar a palavra no original. Pouca vivência da língua real pode fazer com que o tradutor não tenha a malícia de entender as conotações do original. Dando um exemplo bem chulo, seria como um tradutor encontrar no original uma expressão como he doesn’t have any skeletons in the cupboard, não entender que isso é uma maneira irônica de dizer que “ele não tem nada que esconder” e simplesmente decalcar a tradução do original ou, pior, manter a palavra.
- Limitação literária
- A incapacidade do tradutor de recriar na língua alvo um texto com qualidade equivalente à do original. Infelizmente, nem sempre é possível contratar um autor do mesmo ramo para fazer a tradução, talvez porque seria mais caro. Tradutores com pouca bagagem literária na língua alvo (no caso, o português) podem conhecer muito bem a língua original, mas não terão discernimento e nem “jogo de cintura” para recriar o texto original.
- Círculo vícioso
- Considerando a natureza desgastante do trabalho de tradução e a tendência brasileira a ler o mínimo possível, é de se esperar que muitos tradutores tenham restringido suas leituras a, basicamente, os textos que traduzem. O primeiro grande prejuízo que isso traz é a incapacidade de detectar referências fora do contexto específico da obra. O segundo é o “achatamento” da competência linguística do tradutor, que vai ficando cada vez mais identificado com o ramo de conhecimento em que se especializa e, mais preocupante ainda, com as estruturas gramaticais da língua de que traduz. Talvez esse seja o motivo de tanta gente não mais empregar corretamente o pretérito mais-que-perfeito! Uma juventude que cresceu lendo traduções apressadas de livros originalmente escritos em inglês (língua na qual essa estrutura verbal inexiste) não consegue mais raciocinar a ideia de dois tempos diferentes no passado. Isso aconteceu porque os tradutores, demasiadamente focados no original, perderam de vista as potencialidades e riquezas do português.
Tudo isto sendo dito, há algumas palavras estrangeiras que eu considero extremamente difíceis de traduzir. Tanto assim que o encontro de um termo adequado para vertê-las seria algo equivalente a, na poesia, pôr um fecho de ouro em um soneto. Prefiro, porém, não listar esses pequenos demônios, para não me conformar com o suposto “fato dado” de que é impossível traduzir feedback… ops…