Devido à mudança de sentido da palavra ao longo do tempo, acredito que faz sentido algumas pessoas pensarem que é inapropriado falar em “homem” em vez de “humano” e , mas essa não era a intenção original da palavra.
Os romanos, que falavam o latim, língua da qual o português evoluiu, não tinham qualquer pejo em serem machistas — a tal ponto que o uxoricídio era distinguido juridicamente do homicídio por haver razões pelas quais era lícito ao marido matar à esposa, mas não um indivíduo matar a outro qualquer. Mesmo assim, a palavra latina homo não era especificamente usada em referência ao homem enquanto gênero masculino, mas ao gênero humano em geral. Era uma palavra masculina porque o gênero gramatical não costuma ter relação com o gênero sexual: afinal, por que o garfo é menino e a colher é uma menina?
Tanto assim era que o latim incluía palavras específicas para distinguir os indivíduos conforme o gênero. Para o homem enquanto “macho” a palavra usada era vir (donde virum, e não confundir com virus). Para a mulher, a palavra usada era femina.
Parece haver uma certa relação entre as palavras homo e humus, que foi, inclusive, usada por São Jerônimo, na tradução do Gênesis, para traduzir o trocadilho hebraico entre Adão (אָדָם, segundo a Wikipedia) e terra (אדמה, idem). Da raiz vir obtivemos várias palavras que se referem a qualidades masculinas: viril, virilidade, virago, varão, varonil e também barão e seus derivados (mais uma vez, virus é outra palavra!).
Uma outra palavra latina muito usada para se referir ao macho, em geral, era mas, de cujo diminutivo (masculus) obtivemos macho, másculo, masculino, machucar etc. Mas também marido (a troca do esse pelo erre era comum em certas declinações latinas).
Da raiz femina, idem palavras referentes à qualidades… femininas: fêmea, feminino, feminina, feminista, efeminado algumas engraçadas, como femeeiro.
Uma outra palavra latina muito usada para se referir à mulher era… mulier.
Mas e mulier eram usados em oposição, assim como vir e femina. Sua sequência lógica para o português é “marido e mulher” e “varão e fêmea”.
A raiz da confusão é que na cultura romana, machista até a raiz do cabelo, a cidadania era prerrogativa do pater familias (pai de família). Tanto assim que os membros da classe dominante eram chamados de patricius (uma forma abreviada de patres conscripti (“pais registrados”), por oposição aos pais em geral que, se fossem plebeus, não tinham registros genealógicos. Veja que o patriarcado romano considerava os nobres os “pais por excelência” (donde o conceito de “Pais da Pátria” que vemos no nosso nacionalismo). Aliás, a própria noção de Patria vem de pater (“pai”). Donde o ridículo da expressão “Pátria-Mãe” no hino nacional…
Se somente os pais de família podiam ser cidadãos, era natural que fizessem uso quase exclusivo da língua nos espaços políticos. Assim, era sempre um varão, um macho, que fazia uso da palavra homo para se descrever como superior aos animais e aos bárbaros. Daí expressões como homo liber (“homem livre”), homo sapiens (“homem sábio”), filius hominis (“filho do homem”, uma expressão encontrada na bíblia). Como essas expressões, devido ao machismo estrutural da sociedade romana (e logo da cristã) eram encontradas quase sempre na boca de pessoas do sexo masculino, elas adquiriram um caráter progressivamente masculino, como se a mulher não fosse, também, “da terra” (humus).
“Humanidade” e “homem” são cognatos, portanto, e não faz sentido recear o uso da segunda e preferir a primeira. O que faria sentido é difundir a ideia de que a palavra “homem” não se refere ao gênero masculino, mas ao ser humano em geral. Os romanos, machistas do jeito que eram, sabiam disso; mas eu creio que esta é uma luta perdida antes de começada.
Não nos cabe, enquanto “inquilinos” da língua, impor-lhe modificações de caráter ou estrutura. Então me vejo forçado a concluir este texto sem propor coisa alguma para solucionar o conflito semântico citado, contentando-me apenas em ter suscitado o debate.