Correndo o risco de perder muitas amigas feministas, ouso postar aqui uma crítica a um artigo recente da revista Úrsula, de autoria de Lourenço Fernandes, no qual se encontra um ataque bastante virulento a um certo tipo de debate que costuma ocorrer atualmente.
Em primeiro lugar, é preciso salientar que o fenômeno analisado por Fernandes é um problema real e que merece, sim, uma crítica. Ocorre que tal crítica me parece ter sido feita de maneira inepta, não só por recorrer a uma linguagem desnecessariamente agressiva (portanto, divisiva), mas também por revelar uma incompreensão daquilo que se deseja criticar e uma tendência ideológica que julgo inapropriada para alguém que se diz progressista e de esquerda.
O texto começa muito mal ao se apresentar como uma reação à eficácia da argumentação racional para demolir certos argumentos utilizados por defensores de minorias:
Não é por acaso que “aquele carinha” é um homem jovem, na maioria dos casos. Já tem tempo que vemos como os grupos conservadores tendem a aderir mais frequentemente a esse tipo de comportamento. E eles se valem do manual para desqualificar exatamente os argumentos de grupos marginalizados de qualquer tipo, seja em gênero, religião, cor, ou sexualidade. Apenas com lógicas e fatos, eles vão esmagar os seus sonhos de uma sociedade mais justa, suas preocupações por reconhecimento do seu grupo social, ou qualquer outra luta que você considere importante. Apenas com argumentos lógicos e científicos, eles vão esmagar suas tentativas patéticas de defender as políticas em favor das pessoas trans ou das religiões afrobrasileiras.
Não me parece correto rejeitar a lógica porque ela destrói certos argumentos, é como detestar a luz porque revela o que a escuridão esconde, é como detestar a verdade. Se é possível destruir a argumentação em favor de certas minorias utilizando apenas a lógica, isto não quer dizer que a lógica esteja errada, quer dizer que a argumentação destruída era falha. Essa reação alérgica à argumentação racional não soa como o tipo de coisa que uma pessoa inteligente e honesta faria. Quando a lógica o derrota, você estava sendo irracional. Quando seus argumentos não se sustentam, eles são falhos. Quando você se irrita contra quem o critica com lógica, você está admitindo sua inferioridade intelectual e almejando a suprimir o debate.
Certamente os sonhos de justiça e reconhecimento merecem nosso comprometimento, mas eles também merecem ser defendidos democraticamente e de maneira racional, em vez de transformados em artigos de fé, sobre os quais pese um anátema.
Outro ponto no qual o artigo chega às raias do absurdo é em seu elitismo:
Mesmo a voga dos manuais de falácias nas lógicas inglesas do XIX era destinada às boas maneiras das discussões nos parlamentos, isto é, por membros já eleitos e muito bem estabelecidos da sociedade inglesa. Pensar que isso pode ser estendido tal e qual para as discussões entre duas pessoas aleatórias em qualquer parte da internet beira a loucura, e reveste esse manual, agora inútil, de um verniz enganoso de bom-senso.
Para o autor, a prerrogativa de emitir opiniões embasadas na lógica (bem como a de receber tais opiniões) seria um privilégio de classe. Estender essa prática seria uma “loucura”, as massas devem se contentar com discursos mentirosos e manipuladores, com pregações enviesadas e publicidade sub-reptícia.
Não ocorre ao autor que a difusão dos princípios de lógica argumentativa se deu por espelhamento da difusão de práticas de manipulação de massas. As massas do século XIX não precisavam de entender lógica argumentativa porque a democracia era quase inexistente, a publicidade era algo muito limitado e a vida cívica das pessoas se expressava em poucos eventos anuais, como os comícios e as eleições. No século XX, a difusão da publicidade através da “grande imprensa” e a popularização dos meios de comunicação de massas permitiram aos demagogos fascistas tanger povos inteiros, como Mussolini o fez na Itália e Hitler, na Alemanha.
Difundir princípios de lógica argumentativa é uma tentativa de proteger o povo, em geral, de mentirosos e fascistas. A popularidade destes princípios reflete a opressão propagandística que sufoca as individualidades. Ao qualificar de “loucura” a difusão dos métodos racionais de argumentação, o autor não só resvala no elitismo como parece compactuar com as práticas de uma época em que a democracia ainda não existia e ainda ataca uma ferramenta pensada como defesa contra o fascismo. Uma verdadeira rajada de metralhadora no próprio pé.
Curioso é que o próprio autor não consegue negar a eficácia da argumentação lógica para desarmar os manipuladores:
Mas vale sublinhar que essa divisão entre o falso e o verdadeiro não é definitivamente eficaz: um enganador continua podendo, por hipótese, lançar mão de uma falácia que não seja detectada por ninguém e convença todos os ouvintes; ou seja, o argumento falacioso ainda tem eficácia persuasiva.
Aqui é bem óbvio que somente será possível que ninguém detecte a falácia se ninguém conhecer o conceito de lógica argumentativa. Se o argumento falacioso ainda tem eficácia persuasiva é porque a ignorância generalizada dos princípios lógicos faz com que os manipuladores tenham curso livre. Assim como o desconhecimento do direito leva as pessoas a cometerem atos que as tornam vulneráveis juridicamente. Assim como o desconhecimento das regras de trânsito leva os motoristas a se envolverem em acidentes. Os ouvintes são manipulados facilmente porque não conseguem discernir as técnicas falaciosas de debate.
Um ponto em que o artigo parece que acerta a mão é reconhecer que a ética deve preceder à lógica:
A distinção entre o orador honesto e o sofista é ética; mas quando se supõe que a ética correspondente necessariamente à forma do argumento utilizado, a pergunta se engessou a tal ponto que não pode mais realmente dar conta de todas os diferentes tipos e situações de discussões reais, nem, por acaso, da ética
O problema é que a ética, tal como ele a descreve, é um fator subjetivo. Não temos como ler a mente das pessoas e saber se estão mentindo. Analisar a forma de um argumento pode não ser a solução ideal, mas tentar adivinhar se a pessoa está agindo com honestidade a partir de seu caráter é mais ou menos como ler o futuro na borra do café ou nas cartas do tarô. O que fica ainda mais difícil quando analisamos um conteúdo distante de nós, como o discurso de um político. Se não conseguimos adivinhar a insinceridade de pessoas que convivem conosco no dia a dia, como podemos avaliar a ética de uma personalidade pública que só conhecemos por discursos? Então, esse trecho não está, de fato, acertando a mão: está defendendo uma abordagem subjetiva e irracional de um fato concreto (o discurso político), gerando um interdito à análise objetiva.
Aparentemente, os grandes inimigos do autor do texto são a democracia e a objetividade. Isto decorre de uma ideia preconcebida segundo a qual a lógica argumentativa seria limitada: “Os excluídos seriam, imagina-se, os sofistas, mas a verdade é que se excluem com isso todos os que usam de argumentos que não se encaixam na estreiteza da escolaridade desses manuais.” Claro que aqui o autor está empregando, com muito gosto, uma tentativa de perverter o sentido do que seja lógica argumentativa. Fica parecendo, nas palavras dele, que a lógica argumentativa seria uma camisa de força horrível que escraviza o pensamento e oprime mulheres, transexuais e negros.
Na verdade, tudo o que a lógica argumentativa requer é que as ideias se sucedam de maneira racional, que as premissas conduzam a uma conclusão. As “falácias” intencionais nada mais são do que tentativas, estas sim engenhosas e complicadas, de turvar a simplicidade do raciocínio lógico. Se o seu posicionamento político é tal que a exigência de conexão entre suas ideias lhe pareça intolerável, é porque o seu posicionamento político é indefensável.
Mas o ponto mais baixo do texto é quando ele se mete a usar “exemplos” de circunstâncias em que seria “obrigatório” empregar argumentos considerados falaciosos.
O primeiro exemplo envolve uma incompreensão do que significa o ataque pessoal:
Falar mal de uma pessoa ou dos antecedentes de sua vida não é considerado pertinente a uma discussão; é a famosa ad hominem. Essa regra exclui completamente a possibilidade de que a vida e os atos da pessoa sejam importantes na discussão. Por trás de um véu de pluralismo e democracia, ocorre a neutralização de todos os participantes, bons ou maus. Se isso já não poderia dar certo nem numa discussão de internet, o que dizer de uma discussão política hipotética em que o defensor da causa é diretamente responsável pelos lucros advindos da decisão? É realmente irracional apontar a conexão entre uma pessoa que defende uma empresa criminosa e os lucros dessa empresa? O fato de a pessoa ganhar pessoalmente com os ganhos da empresa não conta na hora de pesar seus argumentos?
É claro que uma pessoa comprometida desta forma tenderia a defender sua posição. Também é claro que apontar esta circunstância é necessário. O que não é claro é que o debate se limite a isso. A existência do conceito de ataque pessoal (“ad hominem”) não significa que o debate, uma vez identificada esta falácia, deva terminar, excluindo totalmente outros fatores. Se é justo usar o conceito de envolvimento pessoal para suspeitar do envolvimento de determinada pessoa, não é justo que a suspeita dê fim ao debate.
Tomar alguma ocorrência passada como regra esperada para o futuro, sem confirmação da conexão entre uma coisa e outra, é considerado, em geral uma generalização apressada. Mas, se uma política pública muito ruim, de resultados terríveis, está para ser copiada pelo nosso governo, configura generalização apressada buscar impedir que a política seja instaurada? E quando se faz isso por precaução, isto é, sem comprovação definitiva da relação entre a política pública e o péssimo resultado, a decisão agora ficou irracional?
Obviamente que o conceito de generalização apressada não se aplica ao caso citado, senão tangencialmente. Muito mais produtivo aqui seria fazer o contrário: alegar que a política proposta não tem evidências práticas de sucesso, ao mesmo tempo em que já tem evidências, ainda que precárias, de insucesso. O autor não se dá conta de que as mesmas cartas estão disponíveis para os dois lados do jogo, desde que tenham o discernimento de usá-las. Abolir o baralho não fará com que os jogadores compulsivos deixem de perder dinheiro e abolir o debate racional não tornará os incompetentes e estúpidos menos vulneráveis à manipulação pelos espertos. Na verdade, ao aumentar a quantidade de pessoas incompetentes para detectar os embustes, tornará a todos mais vulneráveis.
Se uma decisão pública incide diretamente sobre uma população de certo tipo e ela diz, com todas as letras, que não está satisfeita com a situação, por exemplo, de destituição de suas terras. Se o grupo tenta argumentar que não podem destituir suas terras porque é ruim ficar sem suas terras, isso configura um círculo vícioso? O interesse dos indivíduos não pode ser princípio de si mesmo?
Não, o interesse dos indivíduos não pode ser princípio de si mesmo, porque se assim for não haverá meios de se obter abrigo legal para ideias de proteção a interesses coletivos. A base do contrato social é que os direitos individuais só estão devidamente protegidos enquanto aceitos como coletivos. Todos têm o direito à segurança pessoal, por exemplo, mas eu não tenho o direito de matar você só porque é do meu interesse fazê-lo.
Entre os direitos coletivos criados para proteger os direitos individuais temos, por exemplo, o direito à propriedade privada, que o autor parece querer defender no trecho em questão. O que torna ilegítima a decisão pública de destituir um grupo de suas terras não é o mero fato de esse grupo estar insatisfeito, mas a violação de direitos gerais. A exemplo do item anterior, se é possível usar argumentos “lógicos” (com aspas e a devida vênia) para atacar esta população desassistida, é igualmente possível, e até mais fácil, utilizar argumentos lógicos para defendê-la.
Se um projeto de lei aparece sob autoria de um notório péssimo deputado, que toda a sua vida lutou contra os interesses de determinado grupo social, é irracional que esse grupo se oponha ao projeto antes de terminar de verificar sua pertinência? Isso seria, por acaso, algum tipo de falácia genética?
Sim, seria, mas seria muito e seria com força. Rejeitar de plano um projeto “antes de terminar de verificar sua pertinência” é uma forma de intolerância e de irracionalidade. Equivale a demonizar o adversário e considerar que somente um lado do debate político pode possuir a virtude. A esquerda, que tanto boicote sofreu devido ao estigma de meramente ser de esquerda, não tem o direito de recair nesse pensamento restritivo.
Esquece-se de que foi um racista (Lyndon Johnson) que implementou os direitos civis dos negros nos EUA, que foi um corrupto (Paulo Maluf) que criou as primeiras regras sanitárias para restaurantes e hotéis no Brasil, que foi um entreguista (Fernando Henrique Cardoso) que estabilizou nossa política monetária, que foi um ditador (Getúlio Vargas) que modernizou as relações trabalhistas no país, que foi um general golpista (Henrique Lott) que defendeu a nossa democracia por três vezes contra tentativas de golpes. Por mais que um deputado tenha sido péssimo em toda a sua carreira, ele sempre pode começar a mudar ou pode, mesmo sem ter mudado, propor leis que sejam do interesse de seu grupo particular de poder, mas também sejam do interesse da sociedade em geral.
Mais adiante o autor volta a enfatizar sua obsessão com a subjetividade e a sua visão da racionalidade como um empecilho, em vez de uma ferramenta:
Quando as formalidades dos manuais de falácias passam para o ambiente político (retórico), portanto, elas deixam de ser funcionais. Frequentemente elas funcionam como fantasmas de regras que só atravancam o discurso e não deixam que as verdadeiras questões se coloquem. Isso porque, na ânsia de legislar o logos, elas voluntariamente deixam de lado o ethos (o caráter de quem fala) e o pathos (as vontades e sentimentos das pessoas interessadas), o que significa, justamente, a exclusão de qualquer questão política. O político, por envolver a vida das pessoas, está necessariamente misturado com o caráter dos disputantes e com o interesse dos ouvintes nessas disputas.
Quais seriam as “verdadeiras questões” da política? Como se pode legislar a ética do indivíduo? Como podemos avaliar a sinceridade das emoções de um interlocutor? Por que temos de concluir que a política não pode ser voltada para a verdade, mas para a ética e para as emoções? A resposta é simples: o autor, sem o saber, está defendendo abertamente os valores do fascismo.
- O fascismo não vê o mundo apenas sobre os aspectos materiais e superficiais pelos quais o homem aparece enquanto indivíduo, senhor de si, autocentrado, sujeito à lei natural e que o induz instintivamente a uma vida de prazer egoísta momentâneo; ele não vê somente o indivíduo, mas a nação e o país, indivíduos e gerações ligados por uma lei moral.
- […]
- Nenhuma ação é isenta de julgamento moral; nenhuma atividade pode ser desprovida do valor que um propósito moral confere a tudo.
- […]
- Não acreditamos em uma solução única, seja esta econômica, política ou moral, em uma solução linear para os problemas da vida, porque […] a vida não é linear e não pode ser reduzida a um segmento traçado por necessidades primordiais.
- […]
- O conceito de liberdade não é absoluto, porque nada é absoluto na vida.
Todas estas são frases de autoria de Mussolini e Giovanni Gentili, contidas na obra “Doutrina do Fascismo”. Como acompanho o debate político de esquerda no Brasil já faz algum tempo, não me surpreendo de ver esses valores compartilhados por quem se diz esquerdista.
Mas, então, se eu disse lá no começo que a crítica do texto é válida em princípio, por que me dediquei a desconstruir a argumentação que ele emprega? Não terei cometido, aliás, uma falácia semelhante à culpa por associação, ou ao ad Hitlerum?
Em primeiro lugar, é verdade que existe uma grande imprecisão no entendimento geral do que sejam falácias — e isso não é só no Brasil. Não devemos considerar isso um perigo, no entanto. Mesmo uma pequena dose de conhecimento pode ser a semente para um aprofundamento maior. Parafraseando o próprio Lourenço Fernandes, o perigo não está na formalidade, mas na ética de quem emprega a formalidade.
Então, não nos cabe atacar a ferramenta por culpa da incompetência de quem a usa. A mesma pedra que quebra a vidraça contém a sílica de que ela é feita. Também não é válido pensar que os bons argumentos são um obstáculo às boas causas. Funciona exatamente ao contrário: as boas ideias sempre podem ser defendidas através de bons argumentos e se é tão fácil demolir os argumentos que defendem uma causa, talvez o problema esteja na causa ser indefensável, não na crueldade de quem a demole com argumentos.
Se há um interesse difundido pela argumentação lógica, devemos alimentá-lo e convencer essas pessoas a irem além, a aprenderem mais e a aperfeiçoarem o seu entendimento. É uma pena que o autor do artigo prefira combater o conhecimento e celebrar a época em que este era domínio de alguns privilegiados.