Ontem, 26 de junho, saiu na Revista Úrsula o segundo artigo de minha série de reflexões sobre os impactos culturais do que eu chamei de “evangelismo” da Jornada do Herói entre os escritores. Não sei se terei espaço lá para publicar a terceira parte, se for o caso, ponho-a no Letras Elétricas mesmo. De qualquer forma, leia lá e deixe seus comentários.
Quando disse, no artigo anterior, que a Jornada do Herói era a “Suprema Caixa” em que os autores teriam de se enfiar, não quis, de maneira nenhuma, sugerir que essa seria a única estratégia possível na construção da ““literadura” do futuro, apenas que é uma das muitas possíveis. De fato, a ideia de limitar o terreno cedido à arte é uma aspiração conhecida dos autoritarismos. É nesse terreno que encontraremos as mentes mais focadas em “compreender e controlar” as massas. A utilização dos arquétipos para manipular os sentimentos da população não é, portanto, uma aspiração nascida da própria literatura, mas a ela imposta de fora. Pelos ideais da “literadura”.
A Jornada do Herói funciona porque recorre aos arquétipos, fonte dos mitos. Reagimos a esses estímulos primitivos porque ainda carregamos uma espécie de “memória genética” herdada de nossos antepassados trogloditas. Trabalhar a Jornada do Herói é lidar com instintos e impulsos primários da psique humana. Aqui saímos dos limites da arte e entramos no jogo duro da ideologia, que secularmente pretendeu sufocar a liberdade artística.
A Jornada do Herói não representaria um problema se a sua adoção dependesse de uma opção dos autores, mas ela é frequentemente imposta pelos tomadores de decisão (editores, produtores, diretores, investidores etc.) que veem nela uma receita fácil para o lucro. Ela não seria problema se a sua utilização fosse uma técnica entre diversas possíveis, mas já ficou bastante evidente que o seu emprego parece ter resultados claros.
Isto é sufocante, porque inverte o processo criativo, fazendo o autor abandonar as histórias espontaneamente imaginadas que não podem ser encaixadas no esquema. Quantas histórias não deixam de ser contadas porque os escritores as descartam assim? Quanto da hegemonia perceptível da Jornada do Herói não deriva justamente de tantas histórias que nela não se enquadrem terem sido suprimidas pelos tomadores de decisões, com base na expectativa de que somente a Jornada resulta em sucesso? Quanto desse efeito maravilhoso de que a Jornada é capaz não seria, de fato, resultante do condicionamento do leitor moderno a esperar por um arco narrativo fiel a ela?
Esse “dilema Tostines” tem que ser analisado com atenção, porque esse é o mesmo tipo de raciocínio a embasar outra argumentação circular que é também considerada muito eficiente e que é também muito prevalente em nossa cultura: a crença religiosa. Não foi por acaso que comecei a empregar, desde lá no começo, os termos “evangelismo” e “ideologia” para me referir ao modo como a Jornada do Herói é apresentada. Existe um aspecto desconfortavelmente teológico aqui.
Precisamos questionar, em algum momento, a afirmação circular que fundamenta todo o conceito da Jornada, o de que a narrativa de ficção é uma continuação da mitologia. Isto nunca é dito abertamente pelos evangelizadores da Jornada, mas é uma conclusão inescapável caso você se indague por que uma história de ficção envolvendo personagens contemporâneos teria de se basear em uma estrutura narrativa criada para narrar os episódios das antigas mitologias. Também é importante lembrar que uma mitologia é somente uma religião que não tem mais adeptos. Se há uma instituição em nossa cultura que realmente recebe o bastão da mitologia, esta não é a literatura.
Afirmar que a narrativa de ficção é mitologia me parece um salto temerário. Embora seja demonstrável que a literatura evoluiu a partir dos textos em que a antiga mitologia foi fixada, com base em que teríamos de concluir que o processo de fabulação de novas histórias continua análogo ao de coleta e registro dos antigos mitos pelos autores do passado? Essa crença parece sólida à primeira vista, mas padece de um fixismo que deveria incomodar as mentes modernas: crer, mesmo implicitamente, que a literatura ainda é essencialmente uma refabulação do mito é crer, sem perceber, que a cultura literária não foi capaz de produzir uma força criativa própria, mesmo dois mil e quinhentos anos depois da invenção da escrita alfabética e do início da difusão da capacidade de ler e escrever.
A Jornada do Herói representa, portanto, uma tendência reacionária no fazer literário, busca reatar o processo de criação a crenças e processos mentais que datam de antes da invenção da escrita. Nega a racionalidade ao negar a possibilidade de criação de elementos literários novos. Afirma um dogma ao propor que todas as histórias se baseiam em uma só.
Ao afirmar tudo isso, o evangelizador da Jornada do Herói se propõe a nos convencer de que cada autor no mundo está fadado a apenas reescrever e revisar um conjunto limitado de elementos, o que é uma maneira educada de dizer que a literatura não tem sentido e que as ambições intelectuais dos escritores são ilusões de sua vaidade. Há até mesmo aqueles que afirmam que a Jornada do Herói não somente possui um potencial imenso para explicar a literatura e o mito, mas também para explicar o mundo e orientar as nossas ações.
Esse é o curioso mundo que vem sendo erguido, tijolinho a tijolinho, pela cooperação inocente de jovens autores que se deslumbram com a descoberta de que, afinal, existe uma fórmula para o sucesso, que pode haver um atalho para a criatividade e que há uma desculpa para a preguiça intelectual e a falta de imaginação. Um mundo em que a predestinação, uma doutrina controversa, defendida por bem poucas religiões, se tornou o “dogma secular” de uma “religião pop”.
Ou será que esses são realmente dogmas seculares?
Existe uma crença religiosa, pouco difundida no Brasil, mas bastante conhecida em outros lugares, que apresenta pontos de contato bem curiosos com a maneira como os adeptos da Jornada do Herói a divulgam e praticam. Essa religião apresenta cinco princípios: “total depravação” da humanidade; “eleição incondicional” dos escolhidos; “expiação limitada” dos pecados dos eleitos; “graça irresistível” da salvação e “perseverança dos santos” na graça.
Ou seja: Não há virtude no ser humano, tudo o que ele faz é pecar e ofender a Deus desde que, em razão do pecado original, nos afastamos do Éden e passamos a viver fora da Graça divina. Alguns foram escolhidos para a salvação, mas não por sua fé ou mérito, e sim porque Deus determinou que fossem. O sacrifício de Jesus foi exclusivamente para expiar todos os pecados de alguns. A predestinação de Deus não pode ser recusada pelos eleitos nem revertida ou atenuada pelos rejeitados. Por fim, Deus nunca mudará sua opinião.
Quando transpomos isso ao evangelismo da Jornada do Herói e verificamos que existe uma correspondência entre certos elementos que, mesmo não sendo exata, consegue ser bastante sugestiva para incomodar:
- Os escritores não têm o poder de criar histórias novas, tudo o que podem fazer é repisar temas antigos, criados nos primórdios da cultura humana, cada vez mais diluindo a força dos mitos originais;
- Alguns fazem sucesso, mas isso não se dá pela qualidade de suas histórias; pelo contrário, ocorre em razão de fatores extraliterários. Afinal, o que determina o sucesso de uma obra não é o talento do autor ou a estética do texto, porém a eficácia com que manipula os arquétipos para atingir o inconsciente coletivo do público;
- Os livros que utilizam a Jornada e fazem sucesso são, em geral, perdoados de todos os seus defeitos, porque o sucesso é uma justificativa em si mesmo;
- Mesmo os autores que rejeitam a Jornada ainda a têm “diagnosticada” nas suas obras, porque é “impossível” criar uma narrativa sem a empregar inconscientemente, então, por mais que um autor “esperneie” contra o dogma da Jornada, tudo que ele faz é inútil contra a verdade de sua validade;
- A Jornada do Herói, mesmo tendo sido desenvolvida há muitos milênios pelos contadores dos antigos mitos, ainda é válida e continuará sendo para sempre, porque a cultura humana não mudou até hoje.
Quem não tiver reconhecido de que estamos falando, os cinco princípios mencionados acima são os “Cinco Pontos” da religião calvinista, às vezes representados por uma tulipa de cinco pétalas, porque as iniciais dos cinco parágrafos formam a sigla TULIP.
Certamente não quero dizer que Joseph Campbell desenvolveu o monomito porque era calvinista — ele era católico. Mas não dá para descartar a influência do calvinismo sobre ele, porque Campbell era americano e conviveu por toda a vida com gente de cultura calvinista bastante entranhada. Além do mais, quando me refiro aos “evangelizadores da Jornada”, eu não estou falando do próprio Campbell ou dos estudiosos de mitologia comparada que aderem ao seu conceito de monomito — mas aos diluidores desse conceito, como George Lucas, Christopher Vogler e uma miríade de autores, editores, roteiristas e quejandos que enche a boca para falar dessa noção como se fosse não somente a última e melhor, mas a única bolacha possível no pacote.
Esse calvinismo inconsciente que parece subjacente ao conceito do monomito não é, de fato, exclusivamente calvinista. Ecos desse mesmo entendimento podem ser encontrados na obra de inúmeros teólogos do passado na tradição judaico-cristã-islâmica. A ideia de que um só deus criou a tudo e a tudo permeia como um tirano universal é um conceito gerador na cultura mediterrânea de que herdamos os nossos valores.
De fato, se os adeptos do monomito podem dizer que a literatura nada mais é do que uma continuação estéril da mitologia primordial da humanidade, não vejo óbice a se afirmar, com menos ousadia, porém com mais ironia, que a tese do monomito se parece mais com uma doutrina dogmática do monoteísmo ocidental do que com um princípio cultural universal. Duvido muito, no entanto, que os “evangelizadores da Jornada” estejam prontos para se ver como pregadores religiosos disfarçados de literatos.