Depende. Em alguns casos, sim. Em outros, não. Antes de mais nada vamos lembrar que Deus, tal como definido pelas religiões predominantes em nossa cultura, é, sim, uma figura de autoridade. Teórica, mas ainda assim autoridade (na prática, como me disse certo professor de filosofia, todo deus é um deus otiosus).
Ocorre que nem todo ateu rejeita Deus por causa da questão da autoridade, mas, para efeitos dessa resposta, vamos falar somente dos que, sim, rejeitam por esse motivo.
Conforme o paradoxo de Epicuro, a existência do mal e do sofrimento implicam em que Deus não seja onipotente ou em que ele não seja sumamente bom. As únicas maneiras de se conceber uma divindade envolvem uma divindade sumamente boa, mas incapaz de resolver o problema do mal e do sofrimento, ou uma divindade sumamente má, que é a criadora do mal e do sofrimento. Uma divindade sumamente boa que tivesse conhecimento do mal, porém não o impedisse, seria impotente. Uma divindade que fosse capaz de impedir o mal, mas não fizesse, seria má.
Eis a transcrição completa do paradoxo de Epicuro:
- Enquanto onisciente e onipotente, Deus tem conhecimento de todo o mal e poder para acabar com ele. Mas não o faz. Então não é benevolente.
- Enquanto onipotente e benevolente, então tem poder para extinguir o mal e quer fazê-lo, pois é bom. Mas não o faz, pois não sabe o quanto mal existe e onde o mal está. Então ele não é onisciente.
- Enquanto onisciente e benevolente, então sabe de todo o mal que existe e quer mudá-lo. Mas não o faz, pois não é capaz. Então ele não é onipotente.
Os ateus que chegaram ao ateísmo por meio de algum raciocínio envolvendo o paradoxo de Epicuro certamente concluíram duas coisas:
- Que as características atribuídas a Deus são mutuamente excludentes, portanto a definição de Deus não faz sentido e
- Que qualquer divindade que se aproxime das três características, mas não as possua em plenitude, terá de ser má ou inútil.
Isso quer dizer que para os ateus que chegaram ao ateísmo através do paradoxo de Epicuro, esse Deus é um tirano sobrenatural apenas. Quando você conclui que Deus é um tirano a que se deve temer, mas que, de fato, não quer ou não pode resolver os problemas, a conclusão seguinte é de que essa autoridade é uma ilusão.
É preciso lembrar que vários filósofos ao longo da História racionalizaram o paradoxo de Epicuro e tiraram conclusões “brilhantes” em favor do ateísmo. Pascal, por exemplo, autor da famosa “aposta de Pascal”, argumentou que é melhor crermos em Deus, porque a alternativa (descrer) nos expõe ao risco de danação eterna. Ou seja: devemos crer em Deus mais pelo receio do mal que ele nos pode fazer do que por causa do bem de que usufruímos pela crença. João Calvino chegou a um raciocínio semelhante: a predestinação absoluta. Para ele, Deus não é mau nem bom, ele apenas traçou o destino de todo o universo e nada podemos fazer para escapar disso. Ou seja: cremos ou descremos conforme Deus quer que creiamos ou descreiamos.
Claro que essas soluções “brilhantes” só funcionam até um certo ponto porque elas nos colocam diante do dilema da autoridade ilegítima. Imagine os súditos de um rei que não governa realmente, mas cobra impostos e ocasionalmente manda executar alguns que não lhe dão o devido respeito. Por um tempo, enquanto acreditarem que o respeito é devido, esses súditos continuarão dando ao rei os seus impostos e rapapés, mas um dia talvez concluam que o poder do rei deriva exclusivamente de todos aceitarem que haja um rei. Nesse dia talvez a cabeça do rei role para dentro de um cesto e seus nobres terão de achar outra coisa para fazer.
A “decapitação” de Deus pela descrença é um fenômeno observado pela filosofia desde a época de Pascal, que já concebera a sua aposta como um antídoto para o ateísmo que ele próprio começava a sentir. Foi Nietzsche que fez o “diagnóstico” mais popular, no famoso parágrafo de Gaia Ciência (um dos mais belos da literatura universal):
O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. ‘Para onde foi Deus’, gritou ele, ‘já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos!** Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo?** Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã?”
Observe que Nietzsche não está celebrando a morte de Deus, mas lamentando-a. Este parágrafo é uma constatação, não alguma forma de pregação. Nietzsche escreve no passado porque ele não está falando da morte iminente de Deus, mas de um fato já consumado e sobre o qual nada se pode mais fazer.
O que ele quer dizer, em minha opinião, é que a partir de um certo ponto as ciências e a filosofia deixaram de considerar Deus sequer como hipótese. Não havia mais lugar para a crença na busca do conhecimento do mundo. Não que houvessem provado a inexistência de Deus, mas que haviam descoberto vastos campos de conhecimento erguidos sem o recurso à figura de Deus. Nietzsche via nisso o prenúncio de dois movimentos:
- As ciências e a filosofia tinham se separado da religião e isso seria definitivo. A tendência era que cada vez mais aumentasse a distância entre elas e qualquer tentativa de reconexão estava fadada ao fracasso porque a separação não se dera por um ato de vontade, mas por mera consequência da evolução do conhecimento. Por isso o louco faz aquelas perguntas: a ciência e a filosofia terão que construir seus próprios caminhos, sem usar a religião como bússola.
- À medida que a distância das ciências e da filosofia para a religião aumentasse haveria uma dificuldade cada vez maior para conciliar a necessidade de crença com a realidade da descrença. As religiões tradicionais estavam fadadas a perder espaço para novas religiões porque quando as pessoas se apercebessem da morte metafórica de Deus elas não seriam mais de crer nas antigas crenças, mas buscariam outros sistemas para seguir. Por isso o louco acende uma lanterna de manhã. Uma “nova religião”, um “reavivamento” do cristianismo, são lanternas acesas de manhã porque são respostas fora de sintonia com a mudança que ocorreu no mundo real.
Uma maneira um pouco mais poética de descrever esta tensão está em H. P. Lovecraft. no célebre parágrafo de abertura de O Chamado de Cthulhu (o autor tinha uma verve sensacional para escrever parágrafos iniciais de seus contos, quase todos são bons):
A coisa mais misericordiosa no mundo, segundo creio, é a incapacidade da mente humana para correlacionar todo seu conteúdo. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio aos mares negros do infinito e não fomos feitos para viajar até muito longe. As ciências, cada uma se esforçando em sua própria direção, até agora nos causaram pouco mal; mas, algum dia, o encaixe de conhecimentos desconexos nos abrirá tão terríveis visões da realidade, e de nossa terrível posição nesta, que enlouqueceremos com a revelação ou fugiremos da luz mortífera em direção à paz e à segurança de uma nova idade das trevas.
— Tradução minha
Os deuses cósmicos de H. P. Lovecraft nada mais são que uma representação do Deus possível segundo o paradoxo de Epicuro. Se tal Deus existe realmente, é melhor ignorar que ele existe, a fim de preservamos nossa própria sanidade mental, afinal.
Essa forma de ateísmo raciocinado que acima descrevi está, de fato, mais próxima de um agnosticismo do que de um “ateísmo” no sentido pedestre da palavra, mas é o ateísmo que se baseia na questão da autoridade, o ateísmo como revolta racional contra uma autoridade que não faz sentido ou que nos parece essencialmente má.
Eu não diria que há uma maioria de ateus pensando assim, nem ousaria dizer que são muitos os que concordam com esses pontos. Eu mesmo, embora considere esses pensamentos razoáveis, não me limito a isso. Sabemos, porém, que há um número considerável de ateus no mundo que pensa parecido, gente que verá na descrição acima um texto quase confessional.
Então, se você não generalizar, poderá dizer que “há ateus que rejeitam a Deus por causa de um problema de autoridade”. Observe que a rejeição de Deus, nesse caso, só existe porque essas pessoas estão empregando metáforas de política para explicar sua relação com Deus, então, sim, essas mesmas pessoas provavelmente são do tipo que rejeitam autoridades ilegítimas ou que são céticas quanto a ordens baseadas puramente no poder. Por isso o ateísmo de esquerda me parece mais natural do que o ateísmo de direita, considerando em que a direita consiste.