Os últimos anos de nossa complicada evolução política trouxeram ao centro do debate uma série de novas categorias, algumas das quais existem meramente como “memes”, isto é, unidades mínimas de informação, desprovidas de explicação profunda. Uma dessas categorias é o tal “pobre de direita”, de que comentaristas de esquerda falam tão mal. Esta postagem é uma tentativa de explicar quem seria esse cidadão e as razões pelas quais tanta gente acha que tal posicionamento não deveria existir.
Existem duas classes de “pobre de direita”, e uma explicação diferente para cada caso. Ambas as classes se caracterizam por seguir uma ideologia alheia.
A primeira classe corresponde aos pobres propriamente ditos, às pessoas que não têm o mínimo necessário para uma sobrevivência digna. Gente que se veste mal, se alimenta mal, tem pouca instrução e depende de empregos miseráveis, quando não de programas sociais ou da caridade alheia.
Essa classe foi chamada por Marx de “lúmpen proletariado” ou “lumpesinato”, por oposição ao proletariado propriamente dito e ao campesinato. Modernamente há quem a chame de “subproletariado” ou pessoas socialmente vulneráveis ou, uma palavra que eu simplesmente adoro pela sua expressividade, precariado.
Se o proletariado se caracteriza por vender a sua força de trabalho em troca de sua subsistência, o subproletário sequer tem uma força de trabalho que o patrão esteja disposto a comprar, ou que ele possa vender por um valor razoável. Por isto ele está relegado às atividades que ninguém mais quer executar e vive à margem da sociedade, com um pé na ilegalidade ou na informalidade.
Modernamente, com a mudança das relações de trabalho que ocorreu desde os tempos de Marx, podemos dizer que o proletariado tal como explicado por Marx se dividiu entre uma classe operária de baixa remuneração e uma classe operária de média remuneração. O lumpesinato fica abaixo de ambas, por não ter emprego formal e não conseguir renda estável. São as pessoas “abaixo da linha de pobreza”.
Os membros do lumpesinato se caracterizam pela ignorância, ou seja, eles não têm acesso a uma boa educação e não têm a oportunidade de viajar — porque não ganham bons salários, não podem gozar de férias e/ou estão excessivamente vinculados ao seu local de residência, o que compromete sua liberdade. Eles também não consomem informação aprofundada pela imprensa, porque não sabem ler ou somente sabem muito porcamente, isso quando conseguem ter algum dinheiro sobrando.
Eles também se caracterizam pela constante ameaça de perda de seu meio de subsistência. Para o membro do lumpesinato, ter ou não ter um emprego (precário que seja) significa ter ou não ter comida na mesa a partir dos dias seguintes, porque dependem de seu salário para suas necessidades imediatas e nunca lhes sobra nenhum recurso ao fim do mês para poupar pensando no futuro.
Finalmente, o lumpesinato se caracteriza pela fragilidade das relações sociais que o amparam, limitadas à família nuclear (quando muito) e a um grupo muito restrito de relacionamentos. O membro desta classe está frequentemente sujeito a subempregos ou a atividades humilhantes, na própria base da escala social, ficando sempre perto de se ver “fora” da população economicamente ativa.
Essas características criam uma condição segundo a qual o membro do lumpesinato tende a aderir, pelo menos ostensivamente, quando não de maneira sincera, às mesmas ideias prevalentes na sociedade — mais especificamente as ideias difundidas pelas pessoas de quem dependem diretamente para receber seu próximo pagamento ou de quem recebem ajuda. O subproletário tende a vender o seu voto (quando vota) e inclusive o faz a um preço bem baixo.
O trabalhador precário é parte da massa de manobra de quem controla seus meios de subsistência. Ele faz parte de um metafórico “curral eleitoral” porque seus votos e sua ação política são guiados por pessoas socialmente superiores. Marx dizia que o lúmpen proletariado não possuiria nenhuma agência política porque suas necessidades imediatas impediam essa gente de pensar a longo prazo.
No entanto, o lúmpen proletariado tem uma forte propensão à violência, que é muito aproveitada pelos seus “coronéis”, mas que, quando surge a perspectiva de uma agitação social revolucionária, pode facilmente pender para a revolução. Para Marx, uma revolução iniciada pelo proletariado poderia facilmente obter a adesão do lúmpen-proletariado — e essa seria uma condição para o seu sucesso.
Para impedir que isso ocorra, os meios de comunicação de massas produzem e divulgam exclusivamente conteúdos alienantes ou idiotizantes. É preciso desacostumar essas pessoas do hábito de pensar, para que não interpretem corretamente os fatos políticos e nunca detectem a possibilidade de uma mudança social profunda. Quando muito, devem ler essa possibilidade como uma ameaça, não como uma oportunidade.
Além disso, os meios de propaganda da sociedade civil procuram alimentar uma cisão entre o lúmpen-proletariado e as classes proletárias (de baixa e de média renda), criando conceitos como o de “privilégios”, que nem sempre são aplicados aos mais ricos, mas o são, frequentemente, em relação a profissionais de carreira estável — como professores, funcionários públicos, policiais etc.
A segunda categoria é a classe média baixa, aquelas pessoas que tiveram acesso a uma boa educação, em geral voltada para treinamentos com vistas à prestação de serviços à elite ou ao Estado, e que, por isso, têm condições de se manter razoavelmente bem informadas, embora ainda não tenham uma leitura ampla do mundo, por não terem condições de viajar e experimentar em primeira mão a realidade distante.
Essas pessoas não deixam de ser proletários só porque ganham um pouco mais. Podem deixar de ser operários, porque não trabalham com as suas mãos, mas ainda são proletários porque não controlam nenhuma propriedade expressiva.
Essas pessoas costumam estar em empregos um pouco melhor remunerados, o que lhes permite vestir-se melhor, ter um padrão razoável de consumo (mas nada exagerado) e, no passado, costumavam orgulhar-se de consumir alguns dos mesmos produtos culturais acessíveis à elite (música erudita, visitas a museus, apreciação da literatura, etc.).
Eles também se caracterizam pela vulnerabilidade de seu padrão de vida, porque dependem de maneira muito imediata de seus salários. O padrão de vida relativamente melhor a que têm acesso compromete integralmente os seus rendimentos, mantendo-os sempre endividados. Sua casa própria está hipotecada em centenas de prestações, seu carro foi comprado através de consórcio ou de um financiamento bancário. Eles também costumam endividar-se pagando escolas particulares para os filhos (para que eles não tenham que se “misturar” com a ralé ou porque creem que essas escolas oferecem um ensino melhor) e planos de saúde para toda a família. Alguns ainda gastam seu dinheiro comprando produtos de prestígio (roupas de grife, computadores ou telefones Apple, carros bonitos) para manterem uma aparência de superioridade. A perda de seu emprego significa uma queda vertiginosa de seu padrão de vida, o que pode ser incrivelmente doloroso porque antes estavam acostumados a viver melhor e a imaginar-se superiores ao povo em geral.
A essas condições se soma uma terceira: a classe média baixa se caracteriza pelo que almeja ser. Sabe uma frase sempre presente nas reuniões de team building nas empresas? “Comporte-se, vista-se e fale como o cargo que você quer ter.” Quando eu era assistente de negócios me estimulavam a imitar o comportamento, o linguajar, a postura e a vestimenta dos gerentes. Assim eu andava sempre de calça social, sapato impecável, gravata pendurada no pescoço, camisa com abotoaduras, cabelo com gel e barba feita todo dia (apesar disso ferrar com a minha pele).
Quando fui a uma entrevista para gerente, me aconselharam a comprar um terno melhor e eu gastei o equivalente a 40% de meu salário do mês comprando um terno de primeira. Passei todo o processo me policiando para não pronunciar as palavras de um jeito caipira e para empregar todos os anglicismos que são obrigatórios no ambiente corporativo — pronunciando-os errado, claro, porque as pessoas que gostam de usar esse tipo de linguagem não sabem inglês direito, apenas gostam de fingir que sabem, então você não pode pronunciar corretamente, ou criará uma situação em que vão achar que você está pronunciando errado ou você vai se indispor com o superior dizendo que você está certo e ele errado…
Existe toda uma pressão social para que você viva cada dia olhando para cima, para aqueles que você quer emular, e não para baixo, para o lugar de onde você veio. Há uma pressão não tão sutil para que você deixe para trás “amigos que o puxam para trás” e “modos de pensar derrotados”.
Sua capacidade de ascender profissionalmente depende de você assimilar esses valores ou de ser convincente ao fingir que os assimilou. Se você mantiver sua autenticidade, rirão de você em cada lugar, acharão graça de seus modos “pobres” e o acusarão de “pensar pequeno”.
Essas circunstâncias colocam a classe média baixa, especialmente os que têm empregos em vez de empreenderem por conta própria, em uma situação de verdadeira lavagem cerebral. Diferente do lúmpen proletariado, que adere aos valores da elite por pragmatismo e ignorância, a classe média baixa é doutrinada nesses valores o tempo todo e adere a eles por uma questão de crença mesmo. Também é muito frequente que o membro da classe média baixa tenha uma rejeição muito grande pelos pobres, não só porque forma sua identidade ao negar que seja membro das classes inferiores mas, também, por temer retornar à pobreza diante de algum imprevisto.
Quem consegue se libertar dessa espiral de doutrinação são somente os que já nascem com mais conforto material, filhos ou netos daqueles que ascenderam da classe média baixa, ou que conseguem ter um pouco mais de discernimento da realidade porque tiveram acesso a mais cultura e educação. Isso cria um conflito de gerações, entre os pais que seguem embebidos das doutrinas que lhes foram incutidas durante a vida inteira, e os filhos que não passaram pelas mesmas pressões, ou um conflito de ideias, entre pessoas que tiveram acesso a ambientes plurais de discussão intelectual (como uma faculdade na área de Humanas) e pessoas que somente tiveram acesso a uma educação instrumental (de que o grande paradigma no Brasil são os cursos da área de saúde).
Além disso, a classe média alta, por já possuir patrimônio e não viver mais de contracheque a contracheque, tende a se sentir mais livre para não seguir automaticamente essa doutrina social. Alguns membros da classe média alta se tornam, portanto, críticos do sistema e são, por isso, ridicularizados como “esquerda festiva” ou “socialistas de iPhone” porque supostamente seu padrão de vida melhor lhes retira a legitimidade para pensar coletivamente (na verdade, é justamente o melhor padrão de vida que lhes habilita a pensar livremente). Outros membros da classe média alta difundem as ideias de controle social, mas o fazem propositalmente, nem sempre por uma questão de serem doutrinados. Eles o fazem porque se beneficiam dessa ideologia, ainda que não sejam realmente membros da elite social e cultural do país.
Os pobres de direita são essas pessoas que repercutem os valores de direita e seguem suas convenções de comportamento. Seja por ignorância e vulnerabilidade (lúmpen proletariado), seja por doutrinação e por receio de perda do status conquistado (classe média baixa).
Quando você entende como os pobres são de direita e por quê, percebe que ser um “pobre de direita” é estar ajustado a uma situação de opressão. Aceitar a opressão como algo proveitoso, ou mesmo inevitável, é negar-se a buscar um mundo melhor.
A ideologia do pobre de direita é egoísta: ele quer, primeiro, afastar-se da pobreza, mesmo que muitas outras pessoas fiquem lá. Por isso a direita o seduz, porque a manutenção do status quo, cerne do pensamento conservador, lhe permite atingir uma situação ideal de separação daqueles a quem rejeita.
Uma mudança profunda, que provoque a melhoria do padrão de vida das classes inferiores, pode trazer para perto essa gente de quem o pobre de direita tanto se esforçou para afastar-se.