Não é fácil simpatizar com aqueles que vivem no ponto mais baixo da escala social: eles tem uma aparência diferente da sua, eles fedem, eles costumam ter vícios, eles são muitas vezes hostis a você e muitos realmente não parecem dispostos a fazer nada por si mesmos. Simpatizar com essas pessoas é, portanto, um sinal de maturidade moral que é alcançado por poucos indivíduos.
Ser egoísta é muito mais fácil, basta você desumanizar essas pessoas e considerar que elas são as únicas culpadas por seu sofrimento e você magicamente se desvincula e não precisa sofrer com elas. O egoísmo, então, lhe permite usufruir sem culpa da situação de privilégio em que você se encontra. Mais que isso: não apenas sem responsabilidade (posto que você se convence de que nada do que faz ou apoia contribui para que pessoas sejam reduzidas à miséria), mas também sem culpa (posto que também se convence de que nada do que possa fazer ou apoiar terá o poder de retirar essas pessoas da miséria) e sem compaixão — a capacidade de sofrer “junto” com alguém.
A ideologia predominante em nossa cultura nos estimula a tratar as pessoas conforme seus bens e sua aparência e faz com que, muitas vezes, tenhamos mais afeto por nossos bens materiais do que por seres humanos diferentes de nós. “Meritocracia” é uma palavra bonita para essa estratégia de dissociação cognitiva entre nós e nossos semelhantes menos afortunados. Afinal, como teria dito um famoso personagem_, por acaso sou o guarda de meu irmão?_
Um dos aspectos do egoísmo, traduzido na “meritocracia”, é julgar as escolhas das pessoas a partir das condições de que nós partimos quando fizemos as nossas escolhas. Assim, uma pessoa branca dirá que a reclamação dos negros sobre discriminação racial é “mimimi” porque as empresas fazem processos de seleção transparentes, segundo critérios científicos, e que, portanto, as opiniões pessoais dos selecionadores não influenciam na contratação. Essa pessoa tem a percepção de que o processo é transparente e científico porque recebeu os feedbacks devidos e pôde construir sua carreira em cima deles. Para uma pessoa negra, os feedbacks podem não existir, ou podem ser opacos, impedindo que ela evolua entre as entrevistas, desenvolvendo-se no sentido desejado pelo mercado. A opacidade do feedback decorre do simples fato de que não é socialmente aceitável deixar de contratar alguém por ser negro, então, quando o selecionador não contrata o jovem negro, ele dá uma desculpa que pode ser totalmente falsa ou exagerando a importância de um critério de seleção no qual o jovem negro foi mal. Isto faz com que na entrevista seguinte o jovem negro procurem melhorar em aspectos que não foram os responsáveis por seu preterimento anterior—afastando-o cada vez mais do perfil desejado pelo mercado.
Esse é apenas um exemplo de como as condições podem ser aparentemente idênticas, mas essencialmente diferentes. Um exemplo didaticamente simples.
Existem, porém, inúmeras variáveis envolvidas nas escolhas disponíveis para cada um de nós. Alguns de nós tiveram excelente educação e estarão necessariamente entre os melhores perfis em cada oportunidade. Isso não é mérito pessoal, mas resulta do privilégio econômico proporcionado por sua família. Alguns de nós tivemos que conciliar educação e trabalho, prejudicando a qualidade de nossos estudos e a nossa própria saúde, fazendo com que chegássemos à mesma entrevista com uma formação pior e com uma aparência “derrotada” (na verdade, o cansaço acumulado de meses e anos). Alguns de nós tiveram indicações de amigos para empregos, através dos quais adquiriram experiência prévia. Outros não puderam nem estagiar durante a formação, porque precisavam trabalhar em outra coisa enquanto estudavam e assim, quando se formaram, não tinham a experiência necessária para conseguir dar o salto para a nova carreira.
Isso se estende a aspectos mais básicos na formação da pessoa. Má qualidade de sono durante a infância é um fator que comprovadamente prejudica a inteligência do adulto porque afeta a capacidade de atenção em geral e prejudica sua cultura, porque quem dorme menos tem deficit de atenção nos estudos e menos paciência para consumir produtos culturais. Desnutrição na infância pode resultar em um adulto fisicamente mais frágil, que pode, muitas vezes, padecer de dores musculares ou ósseas resultantes de lesões causadas pelo esforço do trabalho pesado em um corpo despreparado para isso.
Uma evidência anedótica disso: um conhecido meu (adivinha a cor de sua pele) conviveu por anos com a pecha de “ruim de serviço”, preguiçoso e aproveitador. Sempre teve muita dificuldade para conseguir empregos e foi muito humilhado por trabalhar menos que outros. Segundo a tese da meritocracia, ele merecia ganhar menos porque se esforçava menos. A essa altura você já deve ter adivinhado, então já posso dizer que ele era chamado de “negro ruim” e até sua mulher era humilhada por ter “sobrado para um negro ruim”. Pois bem, esse homem um dia teve um mal súbito durante o serviço e morreu. Para escapar de um processo judicial, seu patrão pagou por uma autópsia e então se descobriu que aquele “negro ruim” tinha uma má formação congênita de seu coração, que lhe afetava a resistência física e a capacidade aeróbica de longo prazo. Ele morreu porque não tinha condições de trabalhar braçalmente dias inteiros.
Para quem pensa segundo a “meritocracia”, casos assim não devem ser levados em conta porque são raros. Pois bem, os sem-teto também são raros: menos de 200 mil pessoas no Brasil, ou seja, menos de um milésimo da população. Adivinha quem são essas pessoas? Felizmente, não temos que adivinhar, podemos saber. A Prefeitura de São Paulo fez, em 2011, um recenseamento da sua população de rua.
Esse recenseamento nos mostra que 77% das pessoas em situação de rua são homens, 62% são adultos (exceto idosos), sem um recorte predominante de raça (embora o segundo grupo mais numeroso dentre os que se identificaram racialmente sejam os negros, com 21%). Cerca de 83% desses moradores vivem sozinhos. Raríssimos são estrangeiros (29 entre 6765) e 53% são do próprio estado de São Paulo.
São, portanto, principalmente homens pobres que não têm apoio familiar ou que o perderam. São adultos que não tem ou não buscam trabalho. Não são de nenhum grupo racial particular (embora os negros estejam super-representados) e não são necessariamente gente que veio de longe “emporcalhar” a cidade. São, principalmente, pessoas que já começaram muito debaixo e não puderam subir, sequer se manter, devido aos azares da vida. Portanto: ser adepto da ideologia da meritocracia, em um país tão desigual como o nosso, é ser mau-caráter.
Entre as causas que levaram essas pessoas à rua, o uso de drogas ou álcool ocorreu em apenas 35% dos casos. Se lembrarmos que pessoas ricas, quando padecem dos mesmos problemas, não sofrem de abandono familiar ou têm, pelo menos, condições de tratar-se em clínicas, vemos que não é um problema moral que leva essas pessoas à rua. Cerca de 30% dos moradores de rua perderam o emprego e não conseguiram mais pagar aluguel e outros 30% tiveram algum tipo de conflito familiar e foram expulsos pelo cônjuge (com ou sem intervenção da polícia). Mais uma vez, são fatores ligados à pobreza, não a moralidade. Pessoas de classe média alta e alta não vão para a rua durante uma fase de desemprego porque a família tem condições de apoiar a transição. Também não ficam na rua em razão de conflitos familiares porque têm outras moradias ou apoio familiar. Somente uma minoria muito pequena (menos de 10% diz que prefere viver na rua).
Finalmente, essas pessoas na rua não são somente drogados e pedintes. Aliás, somente uma minoria o é. Mais de 70% dos moradores de rua ainda continuam trabalhando, e trabalhando duro, tentando sair da rua. 71% deles têm renda e 58% têm uma profissão formal—embora muitas vezes sejam profissões que estão na base da pirâmide social: catadores, flanelinhas, guardadores, prostitutas, biscateiros, trabalhadores de construção civil, jardineiros etc. A mendicância, para essas pessoas, é um complemento de renda, não a própria renda.
Apesar de trabalharem, essas pessoas não conseguem economizar porque não têm como poupar. Os bancos exigem comprovantes de endereço para a abertura de contas. Isto quer dizer que essas pessoas têm de guardar suas economias consigo mesmas — e por isso não conseguem sair da rua. Além disso, perversidade das perversidades, é muito frequente que a ação da polícia durante sua remoção resulte na perda de suas economias ou dos parcos bens que tinham adquirido, isso quando a polícia simplesmente não os destrói ou rouba, como já houve denúncias isoladas. Antes que você pergunte, o “confisco” de carrinhos e cobertores de moradores de rua é roubo, sim, e o único motivo pelo qual não é visto desta forma é porque o respeito à propriedade privada no Brasil tem um recorte de classe e de cor.
Em resumo: a população em situação de rua são aquelas pessoas que não deram sorte nenhuma na loteria da vida e não puderam conseguir nem o mínimo para se manterem com um teto sobre a cabeça. Alguns possivelmente ficaram reduzidos a essa situação porque não se esforçaram ou porque fizeram escolhas erradas, mas mesmo essas escolhas não teriam destruído a vida de alguém que tivesse começado em situação menos vulnerável. Um ator branco e famoso pode ser dar ao luxo de ser viciado e passar por diversos divórcios complicados e ainda ter a simpatia da população e algum dinheiro no banco, enquanto um trabalhador pobre, talvez negro, que teve menos experiência de vícios e nem foi tão promíscuo simplesmente está liso e não conta nem mesmo com a simpatia da sociedade.
A possibilidade dessa simpatia fica ainda mais remota quando se difunde entre nós a ideia da meritocracia, esse conforto espiritual para os privilegiados que não admitem que poderiam, pelo menos, tentar fazer algo pelas pessoas que nada têm. Quando analisado de perto, o neoliberalismo, especialmente a sua parte “meritocrática”, é apenas um discurso de ódio generalizado contra o pobre, visto como uma peste que suja o mundo por onde passeiam os ricos, que estragam com sua simples existência a visão de um capitalismo perfeito e natural. Portanto, esses desvalidos precisam ser culpados de não terem sido admitidos ao paraíso capitalista, nem mesmo na condição de serviçais.