Toda mensagem tem um emissor e um destinatário. Conseguir encontrar o tom correto é essencial para que ela seja sequer compreendida, quanto mais apreciada. Em geral as mensagens mais efetivas são aquelas em que o interlocutor não tem de processar informações novas. Porém a escrita não se limita à sua função comunicativa. Há diferentes tipos de textos e cada um deles requer linguajar diferente. Você não escreve para a sua namorada uma mensagem no mesmo estilo que usa quando escreve uma lista de compras:
1 beijo no rosto
1 abraço abertado
1 cafuné
1 lambida na orelha
1 beijo de língua, bem demorado
2 ou 3 dedadas na barriga para fazer cócegas
2 ou 3 “buzinadas”
…
Se você escrever algo assim, sem ser com finalidade de fazer rir, em um momento apropriado, é mais provável ganhar “1 tapa na cara” antes de sequer chegar a “1 cafuné”.
Digo isto porque a função “prazer” pertence ao domínio literário da língua. Listas de compras não são feitas para fazer rir nem pensar, são meramente utilitárias. Por outro lado, é extremamente complicado desenhar o mapa de uma cidade seguindo as indicações dadas pelo autor de um romance que se passa nela, porque a função da literatura não é utilitária.
Existem vários tipos de prazer. Há quem tenha prazer no cafuné, há quem sinta cócegas, há quem se sinta irritado. Já tive uma namorada que adorava que eu corresse os dedos entre as mechas de seu cabelo, já a minha mulher se irrita quando eu sequer tento e me dá a impressão de que estou tentando acariciar a barriga de uma gata. Há inclusive pessoas, esquisitíssimas, que apreciam lambida na orelha (ou até em lugares mais esquisitos).
Então aquilo que é prazer para você não é prazer para outra pessoa.
Um texto simples e com a linguagem mais próxima possível do dia a dia é, por exemplo, exatamente o tipo de texto que eu não leria de jeito nenhum. O meu prazer não está em meramente debulhar palavras, o prazer está na beleza delas, na harmonia da linguagem e na efetividade da forma — tanto quanto no engajamento do tema. Para mim — e para muitos como eu — um texto “simples e com a linguagem mais próxima possível do dia-a-dia” é um texto que nada acrescenta, que nada ensina — inútil, portanto.
Se “a vida é uma escola onde o viver é o livro e o tempo o professor, onde alguns são sábios porém até hoje ninguém se formou” então isso quer dizer que em tudo na vida estamos a aprender alguma coisa e aquele que se fecha sem desejar mais aprender coisa alguma é uma pessoa que está negando o propósito de sua própria vida.
A simplicidade que vemos de fora pode ser bem complicada para quem a vive de perto.
Todo texto existe para levar uma mensagem. A mensagem pode ser intrínseca, como na lista de compras, que é apenas útil, ou pode ser extrínseca, como em um poema de assunto quase impossível de entender, cuja utilidade está em induzi-lo a refletir ou meramente ensinar novas palavras ou construções sintáticas.
Um texto simples e com a linguagem mais próxima possível do dia a dia é um texto necessariamente sem qualidade. Ele só pode agradar a quem não deseja aprender, a quem odeia ser desafiado, a quem busca o conforto da inércia.
Gente que quer evoluir não se conforma com mesmice.
Veja bem, não quero dizer que o texto tenha que ser difícil, mas, sim, que a partir do momento em que vamos escrever, já nos afastamos do dia-a-dia. Você não escreve para ser lido somente hoje à tarde e por alguém de sua rua, você escreve para os séculos e para além-fronteiras. Quanto mais você se limita ao dia-a-dia e ao simples, menos sentido seu texto tem, menos atrativo ele é, exceto para aquelas pessoas que são tão pobres de espírito que não toleram confrontar-se com os limites de seu conhecimento.
Porém, aquele que teme confrontar os limites de seu conhecimento está condenado à imobilidade. Nós só tememos aquilo que está muito perto. O que você sente se eu lhe disser que existe em Plutão um ser peçonhento e inteligente que é muito veloz e hábil em camuflar-se? Você passa a dormir com medo desse ser hipotético, ou dorme tranquilo porque ele está lá em Plutão? Mas se eu lhe disser que há uma aranha armadeira debaixo de sua cama? Quão tranquilo será o seu sono?
Aquele que teme se confrontar com os limites de seu conhecimento intui que estes limites estão muito perto, que pode tocar-lhes a qualquer momento, a qualquer movimento mal calculado.
Outra característica dos textos simples é que eles ofendem fácil enquanto os textos mais complexos argumentam sem ofender. O parágrafo acima, se traduzido em termos “simples e próximos do dia-a-dia” pode ser resumido a uma frase seca e só: “aquele que tem medo de aprender é porque sabe que é burro.” Dito desta maneira, a frase é incrivelmente ofensiva — mas também menos verdadeira. Esta não é a melhor tradução do que foi dito — é apenas a mais simples.
Infelizmente, vivemos em uma era em que as pessoas querem coisas simples e rápidas. Talvez por isso se ofendam tão fácil. Um texto simples e fácil não tem tempo para ensinar antes de aplicar o teste. Então fica a impressão de que ele é humilhante e arrogante.
Em tudo buscai ao complicado, porque somente no esdrúxulo pode haver prazer e ensinamento.
Quem se interessar pela citação, a canção do Zé Geraldo é esta aqui.
“O Profeta”, de Lúcio Barbosa, na voz de Zé Geraldo.
Eu ainda seria fã de Zé Geraldo mesmo que ele não fosse meu xará, porque ele é um artista incrível. Eu ainda seria fã de Zé Geraldo mesmo que ele não tivesse nascido a menos de 30 km de minha casa. Essas circunstâncias apenas me fazem ter mais afeto por ele, não mais admiração.