Comecemos por tirar o bode da sala. FUNK NÃO É RUIM. Ruins são os artistas que o fazem (dos compositores aos produtores, incluindo toda a fauna dos assim chamados “intérpretes”).
A pergunta foi especificamente sobre o que deveria haver na composição de uma canção para que ela seja considerada de boa qualidade, mas preciso também lhe contar que muitas vezes o que torna uma obra musicalmente interessante é o que vem depois da composição:
Em termos de composição, “Carcará” é de uma pobreza lírica que chega a ser ridícula e que, sim, foi realmente criada por um analfabeto de pai e mãe, sem nenhuma cultura literária. Tenho medo de pensar na tosqueira que essa composição era na voz e no violão de seu compositor original.
Mas em 1965 havia um interesse de parte da intelligentsia brasileira em recuperar a “arte popular” e ressignificá-la. Isso deu a “Carcará” um arranjo mais elaborado e a pôs em um show mítico, na voz de Maria Bethânia.
Desta forma, uma composição absolutamente ruim se tornou um clássico de nossa MPB. Clássico que contém metáforas absurdas como “um bicho que avoa que nem um avião” (estamos falando aqui de uma ave de rapina), “tem o bico volteado que nem gavião” (“carcará” é literalmente um nome regional para a ave que em outros lugares é chamada de… rufem os tambores… gavião…).
Então, meu amigo, sinto lhe dizer que na música popular (essa que depende de letra, melodia e ritmo), a composição não é o mais importante. Importa é a mão que pega a obra e lhe dá forma, como no caso acima.
Aliás, não só na música popular. Se você acha o funk obsceno e acha que o mundo ficou absurdo e nojento por ter música assim…
Você ficaria chocado com a letra desse funk de 1782 composto pelo MC Mozart… que tem basicamente a repetição da frase “leck mich im Arsch geschwindig!” Sugiro que procure ver no Google Translate o que essas belas vozes estão dizendo.
A única coisa que mudou é que hoje peças assim circulam em massa. Antigamente circulavam em pequenos espaços: cada lugar tinha sua depravação regional, em vez de termos a depravação universal. Ninguém no Brasil ouviria os meninos cantores de Viena cantarem Leck Mich Im Arsch, mas nós tínhamos as nossas próprias indecências, que nenhum austríaco poderia imaginar.
Mas não quero dizer com isso que uma letra profunda não tenha seu valor. Tem, claro. Para mim tem valor para cara…. quer dizer, leck mich im arsch se eu não der valor a quem escreve uma letra como “Metáfora”, do Gilberto Gil:
Mas essa letra só tem valor porque está num disco do Gil. Se eu escrever algo semelhante, mas não tiver quem componha melodia, produza e grave… Quase não se ouvirá e os poucos que tomarem conhecimento só vão me chamar de pretensioso. É preciso ser um Gilberto Gil para poder ser elogiado por compor uma “Metáfora”.
A qualidade só existe porque se transforma em obra. E a obra pode ser feita de partes ruins.
Eu tenho a humildade de não achar que tenho gosto superior por gostar de uma música mais elaborada, mas exijo meu direito de abominar certos gêneros inteiros como se fossem pouco mais que urros de neandertais. Respeito a você meu camarada, mas prefiro ouvir um cão latir do que cinco segundos disso que você está ouvindo. Gosto de você, mas prefiro que você fique longe, porque você vem sempre invadindo com seu som e eu aprecio meu silêncio.
O silêncio não ofende a ninguém, mas até música boa pode ofender…
A letra de “Disparada” ofendeu a ditadura militar de um jeito tal que eles precisaram destruir Geraldo Vandré, um dos maiores compositores do Brasil naquela época…
Pensando bem, falar de bunda é bem menos perigoso nos dias de hoje… Leck mich im Arsch geschwindig!