Eu consigo ouvir muita música feita atualmente ou recentemente, mas entendo que você queira saber porque eu não consigo entender e apreciar a música mais típica da atualidade. Vou lhe dar cinco boas razões.
A primeira é a mais óbvia: eu não desejo ouvir a música da atualidade porque eu não preciso querer ouvi-la, ela me invade aonde quer que eu vá. Se vou ao supermercado fazer compras, ela está nos alto-falantes. Se ando pelas ruas em uma região de comércio popular, ela está em alto-falantes. Carros passam tocando-a em seus alto-falantes que, inclusive, são frequentemente voltados para fora, para que eu, que não busca ouvi-la, possa ouvi-la melhor. Se vou a um evento social, ela está lá, é a única música aceitável em eventos para o “público em geral”. Mesmo se estou no conforto de meu lar algum vizinho pode querer ouvi-la em alto volume, ou pode passar alguém tocando-a em seu automóvel.
Para piorar um pouco as coisas, a exemplo da teletela de “1984”, eu não posso me privar desse “prazer”. Não posso pedir que no mercado toquem outra música. Não posso esperar que parem de tocá-la na rua comercial, nada posso fazer contra quem dirige pelo mundo compartilhando sua música. Se vou a um evento social, mesmo que eu tenha a possibilidade de conversar com o organizador, nem em sonho eu poderia influenciá-lo a tocar outra coisa porque seria o meu desejo contra o da maioria. Finalmente, mesmo quando estou em casa, não tenho a opção de pedir ao vizinho que baixe o volume de sua música (e ainda tenho a sorte de não viver perto de bailes funk), a menos que eu esteja disposto a ir lá matá-lo, porque se eu for apenas conversar, corro o risco de eu ser morto:
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- Som alto acaba com um morto no Setor Buena Vista III
O Brasil é um país muito violento, onde o assassinato ou a agressão por motivos fúteis são fatos relativamente comuns. A proliferação da cultura de armas nos últimos anos só ajudou a piorar isto. Hoje em dia você corre o risco de morrer por se sentir incomodado com a música que seu vizinho ouve.
Aquilo que nos é forçado nunca é aceito sem revolta. Por causa disso, independente de gosto musical anterior, eu desenvolvi uma profunda aversão por toda espécie de música que seja comumente ouvida em alto volume em espaços públicos e alto-falantes de automóveis. Já que sou forçado a ouvi-la contra a minha vontade, por minha vontade eu jamais a ouço e ainda procuro evitar produtos que sejam anunciados com esse tipo de música, se for possível. Atualmente estou em uma fase de até mesmo evitar amizade com pessoas que ouvem esse tipo de música.
O tipo de música em questão é previsível. Quem ouve música assim costuma ouvir somente três tipos de música: funk carioca, sertanejo “universitário” ou algum outro tipo de pop descartável. Não me importa discutir se esse tipo de música é bom ou ruim, a questão é que os hábitos de quem ouve essa música são abomináveis e então essa música também se tornou abominável.
O segundo motivo é que essa violência estética se estende ao conteúdo. A música pop de hoje não dialoga mais com a realidade. Há um predomínio quase absoluto de canções formulares, cujas letras repetem padrões e não trazem conteúdo algum. É praticamente esperado que o funk carioca envolva alusões a drogas, sexo (em geral violento ou com tendência a preferência por menores) e ao próprio ato de dançar; que o sertanejo “universitário” (aliás, “primário”) fale de alcoolismo, traição conjugal, “balada”, carros ou shows. Essa música não tem temas políticos, raramente fala de religião ou de atualidades, não faz questionamentos, não conta histórias. É uma música absolutamente sem conteúdo, são letras feitas para burros. Felizmente, a maioria dos brasileiros está a ponto de não saber a diferença entre a mão esquerda e a direita, então gostam dessa música justamente porque ela não precisa ser entendida, sendo apenas uma repetição de padrões conhecidos.
O terceiro motivo é que essa falta de conteúdo ainda deixa espaço para introduzir conteúdos nocivos. Embora eu não seja muito sensível a isso (afinal, como fã de rock clássico eu não posso ser nojentinho ao reclamar de letras que falam de sexo e drogas), incomoda-me bastante a frequência doentia com que diferentes artistas ao longo do tempo vem repetindo temas como “novinhas”, “sentar”, “descer até o chão”, etc. Parece-me que o funk tem uma obsessão com a pedofilia, enquanto o sertanejo “universitário”, fiel ao conservadorismo de sua origem, ainda perpetua o discurso da violência contra a mulher. Sim, o rock’n’roll falava de sexo e de drogas, mas a maioria das canções falava de outras coisas e até mesmo grupos famosos por falar de sexo e drogas trouxeram conteúdos interessantes. Uma das bandas mais drogadas do mundo foi o Black Sabbath — que até fez canções para homenagear a maconha, a cocaína, o LSD e a prostituição — mas eles também fizeram canções sobre as agruras da vida operária, sobre os problemas sociais das classes pobres na Grã Bretanha, sobre as contradições dos ensinamentos religiosos, etc. E nem tanta banda de rock’n’roll foi podrona como o Black Sabbath… mas a maioria dos intérpretes de funk e sertanejo de hoje se identifica com esses padrões citados. Mesmo assim, dos cinco motivos este é o que menos me incomoda, exatamente porque eu não posso ser hipócrita reclamando de novinhas porque gosto disso aqui:
O quarto motivo é que a maior parte da música que se faz hoje é uma anti-música ou, se você preferir, uma pós-música. Eu já falei sobre isso em uma resposta escrita há algum tempo: a evolução tecnológica produziu uma situação na qual a escrita e a gravação de canções deixou de requerer conhecimento e investimento, tornando possível que praticamente qualquer idiota com um microfone e um computador produza uma canção e acidentalmente vire um hit (como mostrou o exemplo da “Caneta Azul”). Isso configura uma situação na qual a música pop deixa de ser uma arte e passa a ser uma parte sem importância da vida das pessoas. Como predisse Any Warhol, qualquer um pode ter seus quinze minutos de fama (ou acha que pode). As facilidades de hoje permitem que o fã de hoje aspire a ser (e acidentalmente seja) o ídolo fugaz de amanhã. Essencialmente, a diferença entre um ídolo e um fã desse tipo de música não está na sua qualidade, mas na fama por si mesma:
Nesse contexto, a música deixa de ser uma experiência interessante. Por que eu gastarei tempo e dinheiro para ouvir uma canção que eu mesmo poderia fazer igual, talvez melhor? Na verdade, em um dia inspirado, um cachorro poderia fazer melhor.
Esse homem não sabe cantar, não sabe dançar, não é bonito, não está em boa forma. Nele não há nada a se admirar, a não ser a fama e o dinheiro. Basicamente a gente se admira de ele ter conseguido as duas coisas fazendo “música”. Detalhe que eu usei como exemplo um funkeiro branco para não me acusarem de racista (afinal, se você diz que uma pessoa negra não tem talento, é porque você é racista).
O quinto motivo é consequência do quarto: a maioria dos intérpretes de hoje não é capaz de interpretar. O que mais se vê são cantores sem dicção, que não conseguem afinar, que saem do ritmo, obrigando a pobre banda de músicos a ir atrás etc.
Joelma canta pelo nariz, com um ovo dentro da boca e ainda desafina nos agudos porque estragou precocemente a voz cantando acima do seu tom natural. Felizmente para ela, o público acha que rosnar para disfarçar os desafinados é uma coisa bacana… Tinha fama de ser um grande talento da música brasileira… Esta nem é a interpretação em que ela desafina mais, eu apenas não quis ser muito radical…
Felizmente eu não tenho à mão muitos exemplos de cantores ruins porque eu não procuro saber quem são. Se ouço alguém cantando um personagem fanho de esquete humorístico eu não vou procurar quem é. Isso me poupa um pouco de sofrer ouvindo música ruim e não desperdiça espaço em meu cérebro sabendo quem são esses toscos, mas me impede de inundar o distinto leitor com exemplos suficientes para embasar meu argumento.
Essa falta de qualidade é generalizada, porém, e sequer se limita a esses gêneros pop. No Brasil de hoje, ao que parece, saber cantar é um fator impeditivo para se ter uma carreira musical. Mal comparando, o mundo musical no Brasil é como uma escola onde só são aprovados os alunos que tiram zero.
Para mim, essa falta de qualidade é algo objetivo e é algo impactante. Não dá para disfarçar, não dá para ignorar. É uma coisa tão gritantemente ruim que até mesmo intérpretes péssimos, como a cantora Pitty e a banda Matanza, soam como clássicos (Pitty, aliás, tem um grande disco em “Admirável Chip Novo”, mas não a acompanhei desde então). Eles não são realmente bons, eles parecem bons da mesma maneira como qualquer macarronada parece melhor para se comer que uma lata de minhocas.
Sinceramente, me diga se você consegue comparar a voz de algum desses “artistas” de hoje com a de uma vocalista de rock dos anos 1960 e 1970 em seu auge:
Grace Slick não precisou de nenhum programa de computador para acertar sua voz. De fato ela ensaiou bastante até chegar a este take perfeito, mas isso nem é para se discutir: ninguém grava (ou deveria gravar) antes de ensaiar bem. A questão é que antigamente se valorizava talento vocal até na música comercial de má qualidade:
Se bem que a essa altura, no fim dos anos 1980, já se notava uma tolerância com a falta de afinação e com os rosnados. Mesmo assim, Bon Jovi ainda tem mais voz que o MC Bin Laden.
Diferente da grande maioria, eu não busco espelhos, eu não quero algo que me legitime como sou, eu busco coisas melhores do que eu, eu quero alvos acima do meu alcance para que eu possa subir mais tentando alcançá-los. Se eu não posso ir até às estrelas, pelo menos é melhor olhar para elas de longe do que cheirar um tolete de bosta que está mais perto. Não me faz absolutamente nenhuma falta a ideia de que eu consigo cantar uma música de que gosto. O fato de justamente eu não conseguir cantá-la é uma prova de que ela merece minha admiração. Eu não sou cantor, eu não tenho que conseguir cantar, a menos que eu tivesse buscado isso. Eu não busquei, eu estudei e pratiquei outras coisas.
Isso não quer dizer, porém, que eu não consiga apreciar música feita atualmente. Desde que essa música seja boa e chegue até mim eu conseguirei apreciá-la. Infelizmente, a música atual que chega até mim é um tsunami de fezes sobre o qual surfam idiotas que se acham melhores do que eu porque ganharam dinheiro assim.