Primeira cena de uma novela de terror que estou planejando escrever. A trama envolve um serviço de entregas pelo interior de Minas Gerais, em um mundo pós-apocalíptico em que vampiros assolam os céus noturnos.
Quando a luz difusa do amanhecer começou a entrar pelas gretas da janela eles finalmente começaram a se afastar. Resmungando, ainda dando pontapés nas portas e em tudo pelo caminho, foram nos deixando em paz. Aos poucos, começou a diminuir a gritaria ensurdecera que atravessara a noite, espaventando o nosso sono. Quinze minutos um dedo de sol se enfiou entre as árvores secas e logo chegou à janela coberta de tábuas de madeira, acabando, definitivamente, com aquela anarquia.
Dei um longo suspiro e me deixei cair sentado na cama suja, as minhas mãos tremiam e as minhas pernas estavam bambas de tanto cansaço. Minha cabeça rodopiava e todo o meu corpo padecia dos calafrios típicos de uma noite virada. Gleice também desabou e logo roncava como uma porca, encolhida ao pé da cama como uma trouxa de roupas. Não tivemos tempo de xingar, nem de chorar.
Nem tentei acordá-la. Peguei-a nos braços, quase não consegui, e então a estendi sobre a cama, colocando o lençol para cobrir seus olhos um pouco. Quase em seguida me deitei também, e logo esqueci até de meu nome. Toneladas de cansaço e sono caíram em cima de mim e me amarraram àquela cama estranha.
Devemos ter dormido por umas seis horas, no máximo. Despertei todo suado e com a boca seca e áspera como um pedaço de pano. Estendi o braço para o lado e Gleice não estava mais na cama. Levantei assustado para ver as horas e senti um alívio imenso porque ainda não era meio-dia.
No banheiro do corredor eu lavei o rosto e bochechei diversas vezes com água e sabão — porque naquele lugar não achei nem creme dental mais. A água morna tinha gosto de mofo e não foi de nenhuma ajuda contra a sede horrível que me acordara. Então saí do quarto e fui procurar Gleice.
Gleice tinha razão. Sempre é importante dormir, por perigoso que seja. Será sempre pior atravessar o dia nessas estradas sem ter descansado. Agradeço por ter aprendido esse bom conselho. Desde que mudei de hábito eu dirijo por menos tempo, mas tenho feito mais entregas com sucesso. Em parte porque tenho Gleice comigo. Sem ela, talvez eu estivesse morto, ou pior. Não posso evitar, no entanto, o medo recorrente de que cada vez que me rendo no sono eu posso estar pegando as mãos da morte: posso dormir demais e acordar com dentes imundos furando meu pescoço. Ratos, com ou sem asas, é a mesma coisa. Tem sido assim há muitos anos, você sabe, tão bem quanto eu. A humanidade já não dorme em paz — e é difícil que algum dia volte a dormir.
Àquela hora da manhã a fome de um jejum de mais de dezoito horas me fazia tontear e me doía na cabeça. Na praça vazia, quase caí sentado quando olhei rapidamente em volta. Quando a tontura me fez perder o pé, o braço de Gleice me amparou:
— Você precisa comer, Titino. Está quase sem sangue nas veias.
Fiz uma careta e não lhe agradeci. Talvez fosse melhor não ter sangue nas veias, mas óleo ou gasolina. O mundo ficou estranho. O lugarejo à beira daquela estrada secundária parecia deserto. Todas as portas e janelas trancadas, nenhum estabelecimento aberto — e nem quero dizer que houvesse muitos, porque o lugar não teria mais que mil habitantes em seus dias mais felizes. Má fé e mau conselho nos haviam trazido ali. Malditos caipiras!
— Achou o de comer?
Ela só resmungou que sim. Em cima do banco da praça havia uma garrafa de chá pronto e alguns inacreditáveis sanduíches de cheiro rançoso.
— Faz a favor de comer, o dia vai ser complicado e você vai precisar de toda a sua força de homem.
— Vai finalmente me fazer feliz, totosa?
— Nem me toque, bobo. Você sabe bem do que estou falando.
Mordi com força o maior pedaço possível do sanduíche. Se meu estômago rejeitasse uma segunda mordida, eu pelo menos teria conseguido quebrar o jejum. O chá, porém, apesar de morno, não parecia ter o sabor alterado. Bebi com gosto.
— Como é possível haver comida fresca nesse lugar? Viu as casas? Esse lugar morreu há mais de cinco anos, no mínimo.
— Não somos os únicos azarados, meu amor…
Gleice falou isso apontando para um canto afastado da praça. Ali estava um furgão de entregas de algum supermercado. Marcas de tiro atravessavam a chapa de metal em alguns lugares. Longos arranhões lanhavam a pintura.
Mordi o segundo pedaço e ele pareceu mais apetecível, talvez por causa da pimenta que taquei. Enquanto comia, observei a praça para me distrair e percebi, com desconforto, que as marcas de giz que eu fizera nas portas e janelas estavam muito gastas, quase todas interrompidas. Não me lembrava de as ter desenhado tão mal, porém eles não poderiam… Não, não poderiam! Ou teriam aprendido a resistir à dor e se revezavam!? Credo. Suei só de pensar como o mundo ficava cada vez mais perigoso para nós.
— Estou surpreso que não tenham depenado o carro. O alarme tocou umas cinco vezes durante a noite… Achei que a gente só ia encontrar a carcaça dele.
Meu comentário fez Gleice me olhar com uma expressão mais dura.
— Eu não queria falar ainda, mas esse é o primeiro problema que temos. Eles o depenaram, sim.
Levantei do banco da praça, ainda levando a garrafa de chá para lavar da boa o gosto estranho do sanduíche, e fui até o carro. Estava inteiro por fora. Abri o capô e confirmei o que Gleice tinha dito: haviam removido a bateria e cortado o burrinho do freio. Por que teriam feito só isso? Provavelmente os malditos esperavam que a gente sofresse um acidente. Ter o carro batido na estrada é como naufragar e ficar boiando num pedaço de pau entre os tubarões.
Isso me acendeu de volta a velha fúria que tenho contra eles, a fúria dos tempos da guerra aberta. Lembrei com saudade o prazer de enfiar as mãos dentro de seus peitos, arrancar seus corações fétidos e fazê-los estourar entre meus dedos… Quase tive uma ereção só de pensar nas sangrentas decapitações…
Eu sabia que eles estavam dentro das casas, escondidos da luz.
— Escutem aqui, seus sacos de vermes! Isso não vai ficar assim! Desta vez vou embora e vou em paz. Mas volto dentro em breve, e se não tiverem dado no pé eu vou ter o prazer de furar seus malditos corações com uma estaca de madeira enfiada pelo cu. Podem fingir o quanto quiserem, mas eu sei que vocês também têm medo e também sentem dor. Eu os conheço, por fora e por dentro, eu sei apertar onde dói!
Os meus gritos ecoaram pela praça e só assustaram passarinhos e gatos. Se algum deles ficara acordado entre as sombras, qual um sentinela que passa a noite a vigiar o inimigo, eu não fiquei sabendo naquele momento. Mas gritar essas coisas me fez bem. Gritar, esmurrar paredes e lutar contra objetos inanimados; as últimas coisas que a humanidade acossada consegue fazer. Vamos perder, eu senti.
Mas não naquele momento, não naquele dia. Acionei a trava do porta-malas, onde eles não haviam mexido, retirei minha caixa de ferramentas. O furgão de entregas tinha uma bateria nova e outro carro velho teria um burrinho compatível. Se não tivesse, usaria fita adesiva e tentaria chegar pelo menos ao destino seguinte. Levei quase uma hora e meia para arrumar os freios e a bateria. Quando finalmente guardei as ferramentas e Gleice entrou no carro, eu me dei conta do motivo pelo qual os putos não haviam simplesmente depenado o carro: alguém entre eles não queria que nós ficássemos ali, para sermos disputados pelas dezenas de ratos voadores. Não! era melhor que os estúpidos, que são a maioria entre eles, assim como são entre nós, ficassem pensando que tínhamos conseguido fugir, para então os espertos nos seguirem, esperando o momento em que o carro pararia de funcionar ou, na pior das hipóteses, que a noite caísse conosco ainda na estrada!
Olhei no relógio: era mais de uma hora da tarde. Tínhamos menos de sete horas de claridade segura. Depois das cinco e meia as sombras estariam longas o bastante para quem estivesse escondido nas locas do mundo poder acordar e botar um nariz para fora. Antes de seis e meia estaria escuro e os voadores estariam por toda parte. Filhos de uma puta roedora!
Antes de sair olhei em volta pela última vez e pude ver olhos de gato cintilando nas sombras das janelas. Essas coisas estão cada vez mais ousadas. Já não têm o velho medo da luz. Eu teria lhes enchido de chumbo, mas a voz de Gleice, cheia de razão, me lembrou:
— Nós temos que chegar ao destino, meu bem. Guarda as balas que a gente pode precisar delas no caminho.
Ela estava certa. Quase sempre estava. Chutei a roda do carro com força e mordi o lábio com a raiva de uma criança que teve o brinquedo roubado por um valentão da escola.
Mas então tive uma ideia cruel, ao ver aquelas casas cheias de madeira seca. Fui até a caminhonete de entregas e verifiquei que o tanque estava cheio de díesel. Dei uma risadinha e usei um galão que tinha comigo para pegar um pouco. Gastei mais uma hora, com Gleice me ajudando na maldade, coisa de que ela gostava muito mais do que eu, e embebi de diesel toda porta e janela em volta daquela praça. Risquei um fósforo, entramos no carro e fomos embora. As chamas subiram rapidamente, queimando o lugar. A pira de fumaça preta ficou visível no horizonte por uns bons seis quilômetros. No meio daquelas chamas os malditos ratos devem ter penado, alguns devem ter pegado fogo até. Talvez tenham sido forçados a correr sem rumo, cegos pela dor, e entraram no sol. Queria ter ficado para ver, mas teria sido perigoso demais até para loucos como eu.
*** a continuar ***