José Tranquilo não era chamado assim por escolha de ninguém. Era seu sobrenome, mas não sua vontade e nem o seu destino. Tinha sido metalúrgico em uma fábrica em uma grande cidade, ganhara algum dinheiro e vivera aventuras, mas tivera que voltar, com o rabo entre as pernas, justamente porque perdeu a calma — e por um triz não perdeu também a alma. Voltou para nossa cidade trazendo na bagagem um uniforme azul com o emblema da Volkswagen e foi ser mecânico de automóveis no Beira-Rio.
Era um homem sem mulher — e isso exacerbava a tendência, comum em mecânicos, de deixar as mãos engrossarem, as unhas ficarem pretas e os poros do rosto se encherem de substâncias escuras. Barbeava-se semanalmente, aos domingos, “para ir ver Deus” e era o único dia em que não o viam de cara coberta por estranhas sardas escuras. Vivia num apartamento acima da oficina, contemplando os veículos estripados em vez de flores plantadas em algum canteiro.
A Rua Nove de Outubro ficava à beira de um lamaçal que diziam ser córrego, na parte do bairro mais infestada de mosquitos e de maconheiros. Os primeiros não incomodavam muito ao Tranquilo, porque nenhuma fome de sangue forçava os pernilongos a picarem através do cheiro permanente de gasolina e de frituras que infestava aquele segundo andar fétido e escuro. Os segundos certamente sim, pois o mecânico, viciado em trabalho como poucos, não admitiria perder a concentração, ou a hora de acordar, devido ao efeito da erva. Por isso não raras vezes apontava a cara de urso à janela para berrar palavrões aos moleques que pitavam seu baseado abaixo do poste de lâmpada eternamente quebrada que havia em frente à oficina. Sempre a turma da fumaça respondia com desconsideração e desrespeito, com ofensas e ameças, mas acabavam indo fumar na moita de goiabeiras que crescia mais para cima, em direção ao Morro dos Macacos. Nenhum deles queria comprar briga com alguém que era Tranquilo de nome.
José Tranquilo poderia ser um homem irascível e descuidado da aparência, mas era católico como poucos e respeitava a Quaresma, mesmo que não respeitasse parâmetros razoáveis para cobrar pelos serviços. Por isso ninguém entendeu quando, num ato de loucura impensada, ele pôs a perder sua alma, mesmo sem nunca ter desgastado sua calma.
O Beira-Rio era tido, naquela época, como um lugar assombrado. Contavam histórias de coisas que apareciam na noite, coisas horríveis realmente. Uma dessas coisas certamente foi horrível, sem ser sobrenatural: o pobre Totonho Pires, capado pelo delegado Honório, nas trevas do regime militar, fugindo nu pelos pastos e berrando “Valei-me Nosssa Senhora”. Quem viu a cena nunca esqueceu. E nunca acharam o corpo de Totonho Pires, mesmo tendo achado sangue nos pastos. Disseram que tinha sido um fantasma. Mesmo os fantasmas não sangrando. Mas essa história de fantasmas era mais antiga, e não tinha só histórias fáceis de explicar como essa. Nas horas mortas escutava-se um grito. Um grito rouco e animalesco vindo de algum lugar imprecisamente fora dos limites da cidade, dos altos pastos que se perdiam na borda da Mata dos Puris. Esse grito se ouvia desde a época da colonização — e não havia delegado nem líder sindical capado que explicassem porque.
O grito não acontecia toda noite, claro. Em mais de cem anos de cidade ninguém nunca conseguiu ter certeza de quando se ouvia. Certamente alguns sabiam que ele nunca fora ouvido em noites que não fossem de sexta ou de terça. Mas não dava para ter segurança disso, porque nem era toda terça ou sexta. Mesmo assim eram muitos os que o tinham ouvido, mas poucos os bastante corajosos para segui-lo na escuridão. Diziam os mais antigos que o grito era coisa dos italianos, que tinha vindo com eles lá de onde vinham, uma terra fria e povoada de terrores antigos. Os italianos, por sua vez, diziam que o grito estava antes deles, e que nem mesmo nos pavorosos cemitérios abandonados dos etruscos, que alguns tinham conhecido, se ouvira jamais alguma coisa tão aterrorizante. Porém, curiosamente, ninguém jamais morreu de forma estranha nas noites do Bairro Beira Rio, nem jamais alguém encontrou a causa do grito.
José Tranquilo, porém, resolveu que precisava de descobrir a razão daquilo. Cansou-se de acordar assustado uma vez ou duas por mês, com o grito propriamente dito, ou com a algazarra de alguns maconheiros desavisados que vinham rolando do Morro dos Macacos abaixo como patos tocados pelo pasto com pressa. Os pássaros nas gaiolas ficavam irrequietos, os gatos nos muros miavam feio como se estivessem sendo estuprados e as pombas que dormem no campanário da igreja voavam para os lados da Torre de Televisão, no Centro. Depois tudo se aquietava e a manhã chegava de leve, como se nem tivesse havido nada.
Na missa de Domingo, na Capela de São Cristóvão, o padre lia alguma homilia sobre a necessidade de estarmos “em guarda pelo espírito” quando as portas duplas se abriram num golpe de ar e as beatas ficaram histéricas. Mesmo com o Padre Bernardo minimizando com uma frase de efeito, dizendo que “anjos passaram por aqui”, a gente simples daquele bairro afastado saiu de lá ressabiada — e José Tranquilo cheio da certeza de que havia alguma coisa que precisava ser feita.
Na segunda feira comprou uma lanterna dessas que usam para caçar rãs, tirou da mala um agasalho de lã de alpaca que tinha usado em São Paulo nos tempos frios em que fora mecânico de fábrica, e esperou a noite de terça para fazer sua exploração pelo escuro.
Saiu de casa à meia-noite, depois de ter dormido boas horas de sono, depois de um jantar carregado de carboidratos. Foi a primeira vez, nos anos que vivia em Bom Porto, que ousou subir até o Morro dos Macacos, passando pela Esquadrilha da Fumaça nas goiabeiras. Surpreendentemente eles o respeitaram, só de ver que ele ia ao encontro da noite e do Grito, levando só uma lanterna e um pulôver. José os cumprimentou, com uma leve censura pelos olhos “vermelhos do capeta” e foi subindo o morro, ofegando, sentindo-se como se tivesse mais do que os trinta e nove anos que tinha.
Além do Morro não havia nada demais, apenas estradinhas, como as que sempre há em torno das cidadezinhas. Mas havia uma lua linda no céu e curiangos curiosos que piavam e pulavam quando seus pés se aproximavam. No frio regular daquela noite de setembro a paisagem parecia tão humana, tão bela. “É quase um sacrilégio imaginar que mesmo em noites dessas tem gente fazendo ruindade no mundo”, lamentou o José, pensando no saco rasgado do pobre Totonho. Resmungando o nome do falecido delegado, decretou que a terra não lhe fosse leve e continuou trotando pela estrada, achando bonito cada cacho branco nas paineiras, cada perfume estranho de madeira, cada bosta de vaca seca num canto. De madrugada voltou para casa sem nada para contar, aliás nem tinha a quem.
Mas disso fez um ritual, e rituais acabam dando resultado. Afinal, um belo dia Deus pode estar a fim de nos dar o que pedimos cada dia, desde que seja algo pequeno. No caso dele, não era.
Estava de novo passando pelas paineiras quando ouviu nas horas mortas um trotar nervoso. Ele, que sempre fora tão tranquilo, teve medo daquele trotar esquisito e apagou a lanterna. Enfiou-se entre dois angicos espinhentos, único abrigo que podia alcançar sem pular a cerca e fazer barulho, e ficou esperando. E fez mal de esperar, como mal tinha feito de ter ido. Vocês hão de imaginar quem era, pois bem. Era ela. A Mula. Já frouxa de uma noite de trote pelos infernos do mundo, vinha resfoleguenta e preguiçosa, louca de vontade de ver a barra do dia, mas o dia ainda vinha bem longe porque o sol só nascia às seis da manhã. Distraída a mula, apesar do fogo mortiço que lhe servia de cabeça, um fogo vermelho escuro, de pouco lume e de pouca labareda.
José Tranquilo viu aquilo e começou a ficar ambicioso. Ele que sempre tinha sido um homem tão avesso, tão estranho. Ora, quem é mais avessa e estranha que a Mula? Dizem que uma Mula Sem Cabeça é uma mulher bonita que pecou com padre, nos tempos em que isso era escândalo. “Foda-se isso, eu não sou de frescuras. Quem gosta de selo é carteiro.” E dizia isso o José porque tentava se lembra de histórias antigas de sua mãe, mulata dos sertões do Mucuri. “Ah, senhora mula, como fazer para quebrar vosso encanto?”, ele se perguntava, de brincadeira, achando-se ridículo, e de repente descobrindo que devia estar sonhando.
Então ela o viu, por descuido. Dizem que a mula enxerga qualquer brilho. Não teria visto a lã fosca do agasalho e nem os olhos deixados na sombra da árvore, mas a maldita fivela do cinto luzira e denunciara-o. Diante disso não havia muito que pensar, a monstra se voltou com suas patas de aço e relinchou de um jeito que arrepiou cada pelo do corpo de cada bicho que havia em volta. Veio empinando com seus cascos pontiagudos e riscou-os no angico, arrancando casca e deixando aquele cheiro de madeira fresca no ar.
Foi pura sorte, ou azar, que Deus permitisse ao José a presença de espírito para usar contra ela, à guisa de arma, a lanterna de corpo metálico, frágil e fria, mas com borda cortante quando quebrada. Gotas ferventes caíram ao chão, queimando a poeira com cheiro de maldição. O relincho se transformou em um berro, humano e horrível, e num piscar de olhos lá estava, refestelando-se no pó imundo, como uma porca no cio, uma mulher morena e assustada.
José se sentiu muito forte naquele momento. Como se tivesse derrotado um Minotauro, ou coisa parecida. Saiu do esconderijo, ousado, cavalheiro, galanteador. A mulher, nua, sangrava, suja e fria do ar da noite.
— A moça me faça o favor de desculpar o mau jeito…
A moça engasgava com a poeira e soluços. Por fim se ergueu, sem vergonha de nada, e o olhou com dois olhos que pareciam brasas:
— Por amor de que um filho de Deus me libertou?
— Por amor de minha vida primeiro, que os teus cascos já quase me degolavam. Mas agora eu vejo que bem devia haver outros amores no caso.
— Você me quebrou o encanto, mas foi muito longe de casa. Estou aqui em pêlo que nem um bicho no mato e logo amanhece. Que vai ser de mim?
— Se a moça puder confiar em um estranho, vou em casa e ainda volto, para buscar a senhorita.
— Confiar é o que eu tenho que fazer. Mas não deixe de vir, que tem muita gente ruim nesse mundo.
José Tranquilo a escondeu numa moita e foi embora, voando pelos pastos como se fosse um fantasma. Quando desceu o Morro dos Macacos e chegou no fim da rua Nove de Outubro já não havia ninguém fumando maconha nas goiabeiras, e nem pombas no campanário. Entrou na velha Brasília azul, ligou-a com muito barulho e saiu acelerado. Tinha setenta minutos antes do sol nascer. Setenta preciosos minutos durante os quais alguém poderia encontrar a Mula Sem Cabeça na estrada. Tinha que acelerar o quanto pudesse, para dar a volta e buscar a mulher. O macacão de mecânico estava no banco de trás: serviria para vesti-la na volta, com pouca suspeita. E depois vinha uma vida, um monte de coisas que podiam mudar, ou não. “Ai meu Deus, me ajuda a chegar logo, antes que maldade do mundo acabe com tudo”. E acelerava com raiva, com pressa, com tesão e com muito cuidado para não parar numa curva da estrada.