A mula sem cabeça é um mito de origem ibérica que existe por quase todo o território nacional, e também por toda a América Hispânica (embora com menos intensidade). Um dos mitos mais ricos e complexos de nossa tradição, é também um dos mais internamente coerentes: é possível explicá-lo de forma coesa, do princípio ao fim, sob o prisma da história das ideias: essencialmente falando, a mula sem cabeça é um mito que pretende inculcar na mulher a submissão ao homem através do casamento.
A doutrina cristã ensina que o homem é “o cabeça” do lar, um ensinamento herdado da tradição romana, na qual o pater familias detinha poder de vida e morte sobre todos que residiam sob o seu teto, além de exercer o sacerdócio do culto hereditário. Somente as prostitutas e as bruxas viviam fora desta estrutura, ambas categorias odiadas e frequentemente associadas. Não ter “um cabeça” se transforma, sutilmente, em não ter “cabeça”, dando à figura da mula a sua característica titular e mais óbvia. De razoável importância é a semelhança fonética entre as palavras “mula” e “mulher”, mas é também significativo que a mula tenha sido, nos antigos tempos, o animal usado pelos padres para o seu transporte regular. Somente os bispos, e mesmo assim apenas em tempo de guerra, poderiam usar cavalos.
Ao não se enquadrar no papel de esposa e mãe, permanecendo solteira, a mulher será imediatamente associada aos três únicos papeis que lhe permite a sociedade: o de prostituta, de bruxa ou de mulher de padre. Os dois primeiros frequentemente se confundem, como vemos nas histórias medievais, nas quais as curandeiras populares prestam favores sexuais aos heróis tanto quanto as prostitutas conhecem unguentos. Portanto, se a mulher sem marido não exerce nenhuma das atividades, conservando uma aparência socialmente aceitável ao não se deitar com homens e nem incorrer no risco de heresia ao receitar remédios para as doenças do corpo (que a fé do espírito deveria curar, segundo a fanática crença do catolicismo medieval), automaticamente será chamada de mulher de padre, visto que os padres não podem se casar e nem assumir publicamente nenhuma relação.
Ser mulher de padre significa, então, agir de forma perfeitamente marital, exceto pela falta de filhos, mas fora dos sacramentos e ditames da igreja, conservando uma aparência de normalidade social que é, de fato, muito frágil, pois se espera que a mulher, antes mesmo que lhe terminem de crescer os pelos pubianos, já esteja casada e, de preferência grávida, “para que não peque”. A transformação da “mulher” em “mula” é um desmascaramento do caráter antinatural de sua situação diante das convenções sociais, uma denúncia de que ela deveria ter se casado e sido mãe de uma penca de filhos em vez de ter permanecido solteira. Mulas sem cabeça são todas as mulheres adultas que não estão casadas, seja qual for o motivo.
Animal híbrido, portanto contrário à natureza, a mula é estéril, como a tradição requer (ou melhor, deseja) que sejam as mulheres fora do vínculo familiar. A prostituta não tem o direito a ter filhos: deve entregá-los a orfanatos porque não tem “condições morais” de criá-los. Isso quando os tem, pois se imagina que ela pratique abortos e outros métodos inconfessáveis para evitar a concepção. Por não possuir quem sustente suas crias em um mundo macho, a mulher/mula “sem cabeça” precisa negar-se à maternidade, uma vez mais praticando atos inaturais. Da mesma forma se suspeita que faça a mulher adulta que não se casou.
Existem duas formas de libertar diretamente a mula de sua maldição: ambas significativamente ligadas ao aspecto sexual. A primeira é “derramar algumas gotas” de sangue do monstro, o que equivale a um defloramento simbólico, assim comprovando que, afinal, a mulher não era sexualmente ativa. A segunda é retirar-lhe o cabresto que lhe foi posto pelo amante ilegítimo, ato igualmente emblemático que representa a sua submissão ao macho. Ao revelar-se, de fato, aceitável perante a norma social, inocente da acusação de perda da pureza, ou, alternativamente, ao transigir diante do papel social que lhe é destinado, a mula se liberta da maldição e pode viver como uma mulher normal. Esta liberdade, entretanto, existe dentro de certas limitações residuais, entre as quais a mais significativa é que a sua libertação dura apenas enquanto viva na mesma paróquia que o seu libertador, o que implica na necessidade de manutenção do vínculo matrimonial. Em alguns casos a crendice menciona que a maldição reverte se morrer o libertador.
A mula nunca é vista como inocente na tradição popular. Tanto assim que uma maneira de romper o encanto é que o seu amante a renegue e amaldiçoe sete vezes antes da missa matinal durante setenta e sete dias. Tendo feito isto, o padre se livra da acusadora presença da mula rondando sua paróquia, mas a alma da mulher é imediatamente condenada ao inferno por ter seduzido o sacerdote. A mulher seduz o sacerdote, nunca o contrário, numa curiosa inversão de papeis, típica das sociedades misóginas, que colocam a culpa na parte mais fraca. Mesmo com a ascendência política e moral que o padre tem sobre os ignorantes, é a mulher (quase sempre analfabeta e supersticiosa) quem lhe seduz e ameaça de perdição.
A maldição da mula é bastante semelhante à do lobisomem em seu modus operandi, sendo inclusive significativo que a mula jamais encontre um lobisomem em suas andanças, a não ser na quaresma, época terrível na qual tudo de ruim acontece no mundo. Os lobisomens se transformam nas noites de terça para quarta feira e nas noites de sexta para sábado, enquanto as mulas se transformam nas noites de quinta para sexta feira e nas noites de domingo para segunda, em geral após a última missa (este segundo dia de transformação não é unânime na tradição). Durante a quaresma ambos os monstros campeiam livremente pela noite, inclusive desobrigados, segundo algumas fontes populares, do fardo de percorrerem sete cemitérios, sete encruzilhadas e sete adros de igreja ou sete cruzeiros; tornando-se, assim, muito mais perigosos.
Uma vez transformada, a mulher se apresenta como uma mula de tamanho padrão, pelo negro ou castanho muito escuro, com a cabeça ausente ou em chamas, com cascos de ferro ou de bronze (mas sempre certamente de algum metal capaz de fazer misérias com o corpo que ela atingir com um coice) e um suor de cheiro forte, mas não exatamente desagradável (uma alusão ao cheiro da vulva?). A mula percorre um roteiro predeterminado (conforme acima) sempre trotando com grande intensidade, como um cavalo passando sobre uma ponte de madeira ou sobre um lajedo. Ocasionalmente ela relinchará de forma assustadora, ou chorará tristemente. Estas ocasiões estão normalmente associadas aos pontos obrigatórios aos quais deve chegar: chorando ao passar pelo cemitério ao lembrar-se do inferno para onde vai após morrer, relinchando ameaçadoramente diante da igreja, por ira do padre que a pôs a perder, novamente chorando na encruzilhada, na esperança de que algum viajante solitário a salve.
Mas a mula não tem controle sobre o seu corpo, visto que não tem cabeça. Rendida aos seus instintos, tal qual a mulher sexualmente ativa que se renega o papel exclusivo de mãe, ela ataca quem se aproxime, fazendo com que aqueles que a poderiam querer salvar a evite. Tal como a prostituta é evitada por homens de bem devido ao risco da doença venérea, tal como a mulher do padre é evitada pelos homens por receio do poder de seu amante, numa época em que a Igreja controlava a sociedade. Quem a surpreender deverá ocultar-se (para que o padre não saiba da quebra do segredo e não “queime o arquivo”?), tendo especial cuidado em não permitir que ela veja nada que brilhe (ou o padre usaria de sua influência para extorquir o ouro e a prata do homem rico que a visse?).
A recompensa por libertar a mula é tomá-la para si como amante, mas não mulher. Recompensa que não envolve responsabilidade, visto que ao ser abandonada ela retorna à condição de monstro noturno. A mula liberta viverá sob a permanente chantagem de seu libertador, obrigada a fazer-lhe todas as vontades sob pena de ele renegá-la, trazendo de volta a maldição.
Como a maioria dos mitos brasileiros, a mula sem cabeça expressa a ideologia de uma sociedade violenta, opressiva e fanática, na qual as pessoas estavam obrigadas a cumprir de forma estrita os papeis que a tradição lhes reservava. Sendo qualquer desvio da norma punido com maldições constrangedoras ou dolorosas.