Já que ontem escrevi sobre a mula sem cabeça, resolvi aproveitar o embalo, enquanto os dados ainda estão frescos na memória, e escrever sobre o lobisomem, com que ela possui na tradição luso-brasileira, uma relação muito próxima.
O lobisomem luso-brasileiro não é o mesmo lobisomem que é visto nos filmes de terror americanos e que passou a fazer parte da tradição literária europeia. Na cultura pop de hoje a comparação mais próxima que se possa fazer com ele seja a do professor Lupin, da série Harry Potter, que tampouco é uma fera irracional e sanguinária que se manifesta nas noites de lua cheia. Porém, ainda assim, há diferenças inconciliáveis entre os dois.
A exemplo da mula sem cabeça, o “nosso” lobisomem é um instrumento de propaganda da Igreja Católica, cuidadosamente desenvolvido como uma espécie de “propaganda viral” do sacerdócio em uma época em que a Internet ainda não existia. Eu explico. Mais tarde. As características católicas do lobisomem ficam evidentes na natureza de sua maldição, no seu comportamento enquanto transformado e nos métodos utilizados para desviar, neutralizar ou meramente sobreviver à maldição.
O lobisomem do cinema carrega consigo uma maldição de forte conotação sexual, pois é transmitida pelo contato sanguíneo: a violência da mordida do lobisomem é uma metáfora para o estupro da mesma forma como a suavidade da mordida do vampiro o é para a sedução. Ambos, lobisomem e vampiro, na tradição centro-europeia e balcânica (que é a que chegou ao cinema) são seres pervertidos pelos instintos e que transmitem sua brutalidade através de atos de “contaminação”.
Mas o lobisomem luso-brasileiro não é assim: a sua maldição não possui um caráter sexual e ele não é violento como o centro-europeu. É uma maldição individual, uma espécie de predestinação. Trata-se do sétimo filho de um sétimo filho: uma condição que não se transmite, mas com a qual se nasce, e que não se reverte, no máximo, se contorna. Ninguém “se torna” lobisomem: ou você nasce para ser um ou jamais o será.
Uma vez que a condição é pessoal e intransferível, verifica-se que é possível evitá-la de todo: basta que nunca haja um “sétimo filho de um sétimo filho”. Nos dias de hoje isto já não é um problema, visto que as famílias não procriam tanto (isso certamente explica a raridade de lobisomens atualmente), mas até meados do século XX não era incomum as famílias chegarem a essa quantidade de crianças, ou a números ainda mais incríveis: a minha avó paterna teve nada menos do 22 irmãs e cinco irmãos, e o caso dela nem foi tão extraordinário assim. O meu avô, que não era de brincar muito, nas raras vezes em que o fazia mencionava que “antigamente se rezava muito a oração de São Bento: um fora, um dentro”.
Se havia tanta família com tanto filho no mundo, então a possibilidade de haver um “sétimo filho de um sétimo filho” era bem real e presente, sendo necessário evitar essa condição a todo custo. Não era incomum que o sétimo filho fosse morto, ainda era menos incomum que fosse entregue à Igreja para ser feito padre, não era raro que fosse castrado e criado como mulher. O mundo antigamente era muito violento e cruel, muito além do que supomos. Na Argentina, onde a lenda do lobisomem chegou muito cedo, pelo contato cultural com o Brasil, inclusive influências do sincretismo afro-brasileiro, os sétimos filhos costumavam ser deixados em encruzilhadas. A situação se tornou tão grave que, em certa época, o presidente Hipólito Yrigoyen se dispôs a adotá-los, todos, como afilhados da presidência e conceder-lhes bolsas de estudo integrais. Formalmente, o primeiro batismo de sétimo filho tendo o presidente por padrinho só aconteceu em 1907, mas o costume se tornou tão arraigado que em 1973 a presidente Perón oficializou-na forma do decreto 848 que automaticamente tornou “afilhado do presidente” todo sétimo filho.
Havia outras formas de ser lobisomem, todas relacionadas a algum tipo de condição impura na origem da criança: filho de padrinho com madrinha, filho de tio com sobrinha, filho de padre. Por esta última razão surgiu a complementaridade em relação à mula sem cabeça, que raramente encontrará o lobisomem na condição transformada. A condição, porém, só se manifestava a partir da puberdade, ou melhor, a partir dos treze anos. A criança, que até então fora normal em todos os aspectos (no máximo apresentando uma magreza ou uma palidez ligeiramente maior do que a regra), passa a sofrer terrores noturnos nas noites de terça para quarta e de sexta para sábado, que vão se tornando progressivamente mais intensos (talvez à medida em que os sinais da maturidade sexual vão se desenvolvendo) até ocorrer a completa transformação do amaldiçoado em um grande cão ou lobo ou, mais raramente, onça. Deve-se notar que não há, na lenda luso-brasileira, relação alguma entre a transformação e a lua cheia. Por fim, nas regiões onde o mito do lobisomem não concorre com a mula sem cabeça de forma frequente, a transformação ocorre nas noites de terça para quarta e de quinta para sexta feira.
O principal sintoma da condição “lobisômica” é o sonambulismo, ou alternativamente a insônia. O amaldiçoado dorme sempre muito mal e padece de sono diurno (sendo, portanto, um mau empregado para se ter a seu serviço). Ele tem uma tendência quase irresistível a sair de casa à noite, especialmente nas noites de transformação, perambulando de preferência pelos lugares ermos, por onde costumam andar os animais.
A transformação do lobisomem ocorre necessariamente em um espojadouro ou em uma encruzilhada. Ali ele rolará na poeira e se transformará. Para quem não sabe, um espojadouro é um trecho de terra onde os animais se deitam e se esfregam para coçar-se ou para dormir. Com o tempo a terra ali fica mais macia e se desprende uma poeira fina. Como a transformação do lobisomem depende da disponibilidade de um espojadouro, pingar água benta ou pó de hóstia em tais lugares impede que sejam utilizados, o que evita o incômoda da “corrida do lobo” pelas redondezas (mas aumenta significativamente o sofrimento do amaldiçoado e a violência de sua transformação seguinte).
Uma vez transformado, o lobisomem, antes de fazer qualquer outra coisa, precisa cumprir a sua sina. A palavra “sina” é cognata de “sinal”, ou seja, trata-se de uma manifestação ritual de alguma coisa. A sina do lobisomem é visitar sete cemitérios, sete encruzilhadas, sete vilas e sete oratórios. As tradições variam quanto à ordem ou quanto a obrigatoriedade dos itens, sendo sempre três as categorias visitadas; mas cemitérios (ou adros de igreja) e encruzilhadas estão sempre na lista. A corrida começa sempre à meia noite, quando ocorre a transformação, e terminará, mesmo que incompleta, quando o galo cantar pela primeira vez (o que ocorre entre as duas e as quatro da manhã, dependendo da região e da raça do galo).
O lobisomem luso-brasileiro raramente buscará ferir um ser humano, exceto se encontrá-lo no meio da estrada, e não é carnívoro. A lenda raramente o menciona alimentando-se enquanto transformado, e quando o faz ele se alimenta exclusivamente de excrementos de animais (“bosta de galinha”, segundo dizia a minha avó). Na verdade parece haver muito pouca deliberação nos atos praticados pelo lobisomem; que estará a maior parte do tempo preso à obrigação de correr por encruzilhadas, cemitérios, igrejas etc.; ou mesmo “maldade”: em vez disso, o “corredor” (como às vezes o chamam em Portugal) é um pobre diabo sofredor, digno de pena e de riso.
Tal como a mula sem cabeça, o lobisomem pode ser redimido parcialmente de sua condição caso alguém lhe tire sangue enquanto estiver transformado. Caso isto aconteça a transformação não mais ocorrerá enquanto estiver vivo o benfeitor (mas os demais sintomas da maldição continuarão), mas existe um perigo relacionado ao sangue: se ao ferir o lobisomem você se sujar com o seu sangue, você passará a se transformar em lugar dele enquanto estiver vivo o lobisomem original. Neste caso, a única maneira de livrar-se da maldição adquirida é matando o amaldiçoado (ou suicidando-se, o que lhe enviará de volta a maldição). Uma outra maneira de se evitar a maldição é confiar à guarda da Igreja a criança que se teme crescer como lobisomem. Sob a proteção direta de Deus, a maldição não se manifestará — ou se manifestará em condições controladas, dentro do claustro.
Quando analisamos este aspecto, em especial, notamos como a Igreja Católica conseguiu engenhosamente utilizar a superstição do lobisomem (de origem romana, relacionada à festa da Lupercália) para construir seu poder: ao amaldiçoar o sétimo filho (ou os filhos de incesto, ou filhos de padre) e apresentar-se como solução para o problema, a Igreja garantia para si um fluxo contínuo de candidatos à vida religiosa. É preciso explicar isso à luz do momento histórico vivido por Portugal entre os séculos XV e XVII, para entender porque isso foi feito.
Na Idade Média vigorava em Portugal um costume chamado “morgadio”, ou seja, o direito de primogenitura feudal. Somente um dos filhos de um senhor feudal poderia herdar seus bens imóveis. Geralmente era o filho mais velho, mas era permitido ao pai indicar outro filho caso o mais velho não se mostrasse digno. Aos demais filhos restava a carreira militar, um posto na Igreja ou uma “sinecura” no governo. As Grandes Navegações, porém, jogaram tudo de pernas para o ar: os filhos sem herança passaram a contar com a possibilidade de virem para as colônias tentar a sorte e, com isso, quem não estivesse disposto a enfrentar o sofrimento da castidade, poderia ter outra opção de vida. Mas diante da perspectiva de viver uma vida de maldição humilhante, na qualidade de lobisomem, pelo menos os sétimos filhos se sentiriam tentados a entrar para o sacerdócio, garantindo a continuidade da Igreja. Desta forma, o mito do lobisomem, tal como ele se apresenta na tradição brasileira, não é senão uma estratégia de “marketing” primitiva que a ICAR desenvolveu para evitar a “fuga de cérebros” naquela época.
Claro que a lenda é mais complexa do que isso, claro que existem outros aspectos a considerar, mas este aspecto, em especial, merece ser considerado, especialmente quando comparamos o lobisomem e a mula sem cabeça.