Estava concluindo o terceiro volume da tetralogia épica sobre uma sociedade secreta maçônico-judaica-ocultista que se refugiara no Brasil durante a colonização portuguesa. Conceber e detalhar os rituais mesclando o Antigo Rito Escocês com outras influências cabalísticas lhe custara meses de pesquisa e o amor de Rafaela, que não suportara mais as longas horas de ausência perambulando por sebos e bibliotecas, não aceitara perder outro dos três quartos do apê para mais prateleiras de livros. Estava ali imerso em seu mundo particular e em contas a pagar já quase impagáveis. Sentiu então o característico cheiro sulfúreo de que as lendas falam. Era ele de novo.
— Boa tarde, amigo.
— Muito boa tarde, Memê. O que anda fazendo?
Sua surpreendente familiaridade com o escamoso, a ponto de lhe ter dado um apelido desses, já não o surpreendia.
— Andando por aqui e por aí…
— Andaste sumido nos últimos meses.
— Ora, a nega que você arrumou era muito supersticiosa e encheu a casa de vela, incenso, arruda e bentinhos para manter-me longe.
— Rafaela? Curioso, nunca notei nada demais de estranho.
— Ora, foram muitas as coisas dela que você não notou, não foi, Totó? Nunca deu muita atenção àquela raba incrivel, né?
O desviado também tinha lhe dado um apelido de colegial.
— Por favor, este não é um momento legal para conversarmos sobre isso.
— Lhe doem ainda os chifres?
— Não tanto quando uma próclise no começo da frase. Mas… peraí, chifres quem tem é você.
— Me faça o favor, Totó… é coisa feia caçoar do defeito físico de alguém.
— Tudo bem, desculpe-me… Mas… chifres?
— Lhe surpreende que eu diga isso?
— Ah, não sei. Mas poderia, por favor, parar de colocar esses malditos pronomes nos começos das frases! Isso me irrita.
— Ora, mas irritar aos outros é algo realmente diabólico de se fazer… muito característico e eu adoro.
— Pára, Memê. Seu papo já andou melhor. O que quer hoje?
— Olha, voltei para lhe fazer de novo a Velha Oferta.
— Não, Memê, não vou lhe apresentar a prima Teresa. Tenho medo da cria que pode nascer disso.
— Não é nada disso, seu tarado!
— Tarado!?
— Aqueles comentários foram irônicos! Eu teria que ser muito pervertido para pensar em ter alguma coisa com aquela mulher. Aliás, eu sou muito pervertido, me dá o telefone dela?
A gargalhada dele era obscena.
— Memê, eu vou lá buscar as velas da Rafaela para lhe mandar pros quintos.
— Tá bom, eu prometo que não falo mais nisso. Aliás, meu assunto é outro.
— Sim, continue.
— Vim repetir a oferta.
— Oferta… oferta…
— Oh, sim, faz tanto tempo.
Ele retirou do bolso uma brochura de folhas amareladas e capa muito amassada, que fedia tanto quanto ele mesmo. Era um Pacto.
— Como da última vez: o sucesso em troca da alma etcétera.
Os olhos de Fausto percorreram a pilha de notificações extrajudiciais sobre a escrivaninha. Ficou balançado a aceitar.
— Não sei se vale a pena vender a alma em troca de alguns anos de prazeres e de riqueza.
— Certamente que não vale, ou eu não precisaria pagar. Mas existem compensações. Uma delas é que, ao contrário do que dizem, eu não me empenho em torturar ninguém. Eu até me esforço para fazer uma boa hospedagem, a minha casa é que não ajuda.
— Eu sei, eu sei. Já me disseram que o problema do inferno não é o clima, mas as companhias…
— De toda forma, resolvi lhe facilitar. Subi a oferta. Sucesso, dinheiro, um pênis cinco centímetros maior, tudo funcionando e com saúde por setenta anos. Tá aqui meu cartão… Se decidir aceitar os termos do Pacto.
O cartão, chamuscado nas bordas, escorregou das unhas duras e pretas de Mefistófeles quando Fausto o pegou.
— Você tem telefone celular? — perguntou Fausto, examinando cartãozinho.
— E por que não? Tem coisa mais infernal que o celular?
Fausto riu gostosamente e aceitou das mãos de Mefistófeles a minuta do Pacto, uma brochurinha manuscrita em pergaminho e encadernada no que Memê jurava ser couro humano, tirado de gente honesta e trabalhadora. O diabo lhe alertou para que lesse atentamente, rubricasse cada folha, reconhecesse firma em cartório (uma coisa infernal, claro) e só então ligasse.
— Estou concedendo tantas vantagens em troca de sua vagabunda alma que eu não posso correr nenhum risco de quebra do Pacto.
Assim acertados, Memê foi embora deixando, como sempre, uma garrafa de bebida de alta qualidade para servir de tentação. Daquela vez foi slivovitz artesanal búlgaro, fermentado de ameixas colhidas pelas mãos de lindas camponesas louras dos Cárpatos, que usavam saias rodadas e lenços nos cabelos, ou pelo menos assim apareciam no rótulo.
Há muito tempo Fausto não provava uma bebida boa. Vivia à base de água da torneira e cerveja barata. Abriu a garrafa e sentiu o aroma suave e frutado, que evocava os calmos regatos dos Bálcãs. Pensou nas mãos calejadas das lindas camponesas búlgaras e isso o excitou. Gostava de mulheres trabalhadoras. Quanto criança, na época de uma distante guerra fria, muitas vezes se masturbara diante da capa de uma revista soviética que recebera de brinde da embaixada: Rabotnítsa, “mulher operária”. Na capa ia uma moça de rosto arredondado, olhos ligeiramente amendoados, cabelos que pareciam fios de teias de aranha, tão finos e louros. Ela tinha um sorriso lindo e uma roupa colorida, padrão folclórico de algum lugar do Cáucaso. A revista estava em russo e Fausto nunca conseguira saber nada a respeito da moça, cuja biografia estava em destaque no interior, entre fotos pálidas em preto e branco, que a mostrava entre seus pais num lugarejo rústico. Pensava nas mãos calejadas das camponesas búlgaras que colhiam ameixas para fazer slivovitz e … oh, como o mundo é imenso e cheio de delicadas pequenas maravilhas para aqueles que têm dinheiro e tempo para experimentá-lo!
Tomava o slivovitz devagar. Sorvia cada gota como se fosse o próprio hidromel do paraíso. O roxo pálido daquele líquido tingia os seus olhos de tristeza por ser tão pobre, e de repente a trilogia pareceu sem sentido.
Revirou nos dedos o cartão de Mefistófeles. Por fim, desistira de suportar a pobreza e sucumbiu à vontade de sentir acariciando o seu sexo as mãozinhas pequenas e calejadas das louras camponesas dos Bálcãs, ou do Cáucaso ou da Puta que o Pariu. Digitou apressadamente o número: 666-013-9990-0666. Por um momento pensou que era curioso que o diabo, se fosse brasileiro, seria morador de algum lugar em São Paulo…
— Oi informa: você não tem créditos suficientes para fazer esta ligação.
Xingou todas as gerações de locutoras que emprestaram suas vozes melífluas para as companhias telefônicas e discou de novo, a cobrar. Era uma vergonha fazer isso, mas Mefistófeles já era seu chegado, não se importaria.
— Boa tarde, aqui é Fausto.
— Booooa tarde, Fausto. Então, leu o Pacto inteiro?
— De cabo a rabo — mentiu.
— Estás de acordo?
— Sim.
— Já registrou?
— Não precisa, eu assino com sangue como você gosta. De qualquer forma, não tenho dinheiro nem para reconhecer firma desta joça.
— Aceito as condições. Estou indo para aí.
Minutos depois um Uber black parou à porta e Mefistófeles desceu.
— Eu poderia ter vindo num estalo, você sabe, — ele disse — mas tenho de prestigiar esse grande projeto de um amigo meu…
Mefistófeles tirou do bolso uma seringa e extraiu 10 ml de sangue do braço de Fausto, não sem antes zombar que ele andava comendo tão mal que já quase não tinha sangue. Depois injetou aquele líquido anêmico em sua caneta Montnoir Plus dizendo:
— Você devia fazer isso é com a sua impressora: fica mais barato do que comprar cartuchos de tinta. Aliás, se você puser ouro líquido ali ainda fica mais barato.
Passou-lhe a caneta e Fausto rubricou o documento, em todas as vias. Quando terminou Mefistófeles lhe cumprimentou:
— Muito bem, bem-vindo à companhia. Será um prazer tê-lo conosco no time. Espero que tudo fique conforme o seu agrado. Agora, por favor, me desculpe, mas tenho de me retirar, nesse exato momento tenho um ocultista carioca que já foi letrista de rock está me evocando e sinto que ali vai ser algo grande.
Fausto ficou sozinho em casa, com suas contas, e sem perceber nada mudado em sua vida.
Semanas depois, no entanto, começou a receber ofertas de inúmeros editores. Ofertas com valores bem razoáveis. Desovou todos os livros que já havia escrito, cada poema. Os contratos lhe renderam uma grana preta. Investiu em ações e em menos de dois anos, graças a um faro sobrenatural para o risco, havia se tornado um dos maiores bilionários do mundo. Comprou uma mansão na Bulgária, em uma região remota, onde era servido por sete jovens de mãozinhas pequenas e sorrisos alvos. Os aldeões faziam o sinal da cruz ao vê-lo passar. Gastava muito dinheiro em desodorante.
Até que um dia notou que as suas gavetas estavam vazias. Toda uma vida de criatividade guardada e represada tinha sido publicada e os editores ainda queriam mais. Sentou-se então para tentar terminar a inacabada trilogia e descobriu, espantado, que não sabia como dar seguimento à história, não tinha nenhuma ideia.
Vinte dias depois, ainda sem conseguir escrever nenhuma linha, telefonou para Memê.
— O que houve, não consigo escrever nada! Até a lista de compras tenho que ditar para a Natasha! E olha que até aprendi a falar e ler em búlgaro! E olha que consigo escrever quando alguém me dita, e consigo escrever relatórios financeiros muito bem! O que aconteceu comigo?
— Mas, Fausto, você não me disse que tinha lido o Pacto?
— Bem, eu menti!
— Então abra a gaveta e leia a sua via, por favor. Antes tarde do que mais tarde ainda, né?
E desligou.
Fausto pegou a sua via do Pacto e foi prescrutando as infindáveis cláusulas, parágrafos e incisos até que, espantado, encontrou isto:
CLÁUSULA VIGÉSIMA QUARTA – Em compensação pelos benefícios listados na CLÁUSULA TERCEIRA, o PACTADO entrega ao PACTUADOR o direito de levar sua alma quando transcorrido o período mínimo citado na CLÁUSULA QUARTA. PARÁGRAFO PRIMEIRO - Em ressarcimento por chamadas telefônicas a cobrar originadas antes da assinatura do PACTO, o PACTADO concorda em renunciar ao seu talento artístico em favor do PACTUADOR, que dele disporá em favor de outros pactados, como deseje. PARÁGRAFO SEGUNDO - Em caso de assinatura do PACTO por meio de sangue, o PACTADO receberá como contrapartida uma proporção equivalente de ambição artística.
Como requinte de crueldade, no verso da folha anterior, Mefistófeles havia rabiscado em sua caligrafia barroca e aljamiada: “mas você vai ficar rico, vai faturar um milhão, quando vender toda sua alma, para ficar com o Diabão.”
Antes de sucumbir à cegueira louca do ódio, Fausto foi capaz de uma última constatação irônica: “Eu sabia que tinha um Pacto, ele não era tão bom assim…”