Quando eu era criança, ser chamado “caipira” era praticamente um xingamento. Equivalia a ser chamado de “ignorante”, “abobalhado” ou “ingênuo”. Piadas de caipira eram muito mais fortes que as de português. Talvez isso se explique pelo fato de que nós, os habitantes da Zona da Mata de Minas Gerais sermos descendentes de colonos provenientes, principalmente, das terras fluminenses, gente mais ligada à “Corte” e ao exterior. Nós da Zona da Mata de Minas Gerais vivíamos de costas para Belo Horizonte e o resto do estado, olhando com saudade para o litoral. Nós reclamávamos de viver numa terra de montanhas, adorávamos vargens, viajávamos à praia nas férias e aprendíamos a chiar o esse com poucas semanas de convivência. Caipiras eram os outros, e música sertaneja (uma concessão para uma minoria de aborígenes que viviam nos cantões), coisa que só se ouvia de manhã cedinho em nossas rádios. Torcíamos para os times do Rio de Janeiro, acompanhávamos revoltados o noticiário policial carioca, vivíamos a dizer que não queríamos nunca viver no Rio de Janeiro. Só que era mentira, claro.
Só que isso tudo foi nos anos oitenta, no século passado. E desde então muita coisa mudou. Quase ninguém mais acomapnha rádio em ondas médias (a gente ouvia Rádio Globo, a Tupi, a Mundial e a Eldorado), pouca gente lê jornais (Jornal do Brasil, O Globo, o Dia, Jornal dos Sports e Jornal do Commercio) e a televisão via satélite, com programação neutra, nos afastou do contato imediato com os anúncios das lojas cariocas. Hoje conhecemos as grandes, essas que aparecem na programação nacional, mas ninguém mais ouve falar de lojas como a Impecável Maré Mansa (que patrocinava um famoso programa humorístico na Rádio Tupi, e posteriormente na Globo), ou a R. Pinto (“que canta de galo com preço de milho picado”, uma presença indefectível na Rádio Relógio Federal, “cultura e hora certa a cada minuto”, “… você sabia?”).
Nada poderia ser mais estranho à cultura carioca do que a cultura caipira. O carioca é cosmopolita, olha para o mundo, conhece vários tipos de gringos, tem hotéis, teatros e museus. O caipira, recatado, olha em volta de si, desconfia do mundo lá fora, cheio de pessoas diferentes e mal-intencionadas. Toda a cultura do carioca gira em torno da espontaneidade, da alegria. A cultura caipira gira em torno da formalidade, do respeito, da religiosidade. O carioca é esperto, o caipira é heroico. Nunca as rádios do Rio tocavam música caipira. Para o carioca, o caipira é um enigma, um selvagem, talvez uma relíquia, possivelmente um fóssil. O carioca ri do caipira. O caipira ignora o riso, tal como o visitante do zoológico não liga para a gargalhada do macaco. Dois mundos que existem de costas um para o outro, quando se encaram não se reconhecem.
A gente só podia ouvir música caipira em ondas curtas, nas rádios de Belo Horizonte (Inconfidência, Itatiaia e Atalaia, as principais), nas de São Paulo (Record, Globo, Aparecida) ou de Goiânia (Anhanguera). A transmissão chegava com muitos assobios por causa da interferência. Afora isso, havia o programa “antropológico” da manhã de domingo (o “Som Brasil”), no qual Rolando Boldrin (a princípio) ou Lima Duarte (pouco depois), fantasiados de Mazzaropi, apresentavam artistas folclóricos. A música caipira só tinha lugar nos canais de televisão quando era mostrada como como folclore.
“Mas a tal música caipira não é folclore?” Deve alguém estar perguntando. Depende do ponto de vista. Se considerarmos que o samba é o “folclore carioca”, então música caipira é folclore também. Mas se pensarmos no folclore como uma coisa distante e quase morta, que precisa ser preservada através de programas governamentais, então ela não é isso. Pelo menos não naquela época. O gênero caipira era a expressão artística do Brasil rural, do Brasil do planalto, do Brasil sem mar, do Brasil português. O Brasil de antes do imigrante, o Brasil de antes da cultura de massa. Para os que viviam esse mundo, o gênero caipira era tão espontâneo quanto uma roda de pagode o é para cidadão carioca.
Mas nos anos oitenta do século XX, esse Brasil estava morrendo rápido, com a migração para as grandes cidades e com a eletrificação dos grotões. A alfabetização e a entrada da televisão eram forças irresistíveis, diante das quais o Brasil caipira recuava sempre mais para longe. Triunfava o cosmopolitismo do carioca, definhava o brio conservador do caipira. O Brasil caipira aprendeu a rir, esqueceu a viola e começou a perder o sotaque. E aqui, onde o sotaque nunca foi forte, resta pouca lembrança dele.
Curiosamente, nesse processo em que a cultura caipira desaparecia, as ondas culturais se chocavam e os fluxos se invertiam. A televisão passou a repetir o sinal vindo de Belo Horizonte, o rádio deixou de ser popular e a internet criou um canal direto com o mundo, sem precisar fazer escala no Rio de Janeiro. Com isso, fica até parecendo que estamos mais longe de lá, que até estamos em outro estado. Junto com os telejornais belo-horizontinos, vieram também os jogos de Atlético e Cruzeiro, que começaram, aos poucos, a dividir torcida com Flamengo, Vasco da Gama, Fluminense e Botafogo. Hoje já não estamos de costas para Minas Gerais, porém, a verdade seja dita, Minas Gerais ficou muito mais parecida com o Rio de Janeiro, até na violência urbana e na cultura de massas. Minas Gerais não é mais caipira, mesmo ainda estando cheia de cidadezinhas drummondianas.
Ficou mais fácil rejeitar a identidade “caipira”, e tudo que ela acompanha. Nós somos diferentes, somos descendentes de colonos da “corte”. Nós não falamos “engraçado” e nem nos vestimos de um jeito ridículo (que, aliás, nunca passou da caricatura inventada pelo cineasta e ator ítalo-brasileiro Amacio Mazzaropi). E como nós rejeitamos a identidade caipira, por causa destes aspectos que julgamos ridículos, rejeitamos junto com ela a cultura tradicional que a ela se liga. Vivemos estas montanhas, mas não olhamos para elas: queremos o mar distante, o além-mar se possível. O que está próximo não nos interessa. “Nem no passado nós fomos caipiras”.
Mas por que essa rejeição. O que era tão horrível no mundo caipira, para merecer que o rejeitássemos tão completamente. Não tenho gabarito suficiente para dizer isso, mas tenho as minhas opiniões. O Brasil caipira representa algo que o Brasil resolveu superar: o caipira é discriminado porque nós temos vergonha de nossas raízes indígenas, africanas e portuguesas. Rejeitamos o caipira porque o nosso objetivo é a assimilação no globalismo: não gostamos de nossa cara, então queremos fazer uma plástica que nos deixe com cara de um ator americano. Não queremos ser morenos, queríamos ser louros escandinavos. Nós não gostamos do Catolicismo “supersticioso” e nem da Umbanda primitiva, queremos a “reza forte” e “fashion” das igrejas “fast-food” importadas com franquia e tudo lá dos Istêitis. Nossos nomes são difíceis de pronunciar (pelos americanos) então queríamos outros, mais “internacionais”, como Johnny, Peter, Richard, Michael ou David. E como não sabemos inglês, acaba ficando Jhone, Piter, Rikky, Maicon e Deyvid. Temos vergonha da viola e da botina, mas não temos vergonha de agradar gringo na praia para ganhar trocado, como macacos de realejo. Temos vergonha da música caipira, porque fazia chorar e pensar, mas não temos vergonha de rebolar para o riso do mundo.
Hoje descobri que sou caipira, que ainda estou ligado a essas coisas antigas e a uma forma tramontana de pensar. Estou aqui, entrincheirado nas minhas montanhas, olhando desconfiado para os perigos que vem debaixo, lamentando que não tenha suficiente azeite para enfrentar todo o assédio que vem pela frente.