Um artigo de polêmica cultural/política, não datado, mas provavelmente escrito entre 1998 e 2000, encontrado em um velho caderno que ia a caminho do lixo. Devido ao contexto em que foi escrito, este texto não se dirige ao público amplo que a internet alcança, mas a um público muito mais estrito e regional, alcançado pela imprensa escrita do interior. Lembro vagamente de tê-lo preparado para ser lido em um encontro de escritores que se estava tentando organizar na época.
O centro-sul do Brasil nos é apresentado como a região irradiadora do desenvolvimento econômico e cultural do país, mas quando olhamos de perto verificamos não ser bem assim. O impulso econômico que daqui se espraia é originário de fora e não se volta para a edificação da nacionalidade — mas para a produção de excedentes que são absorvidos pelos mercados locais, arranjados de acordo com a estruturação do capitalismo internacional, que busca, por sua vez, esmagar as variedades regionais e políticas e impor a plana homogeneidade de uma aldeia global consumista, onde apenas sobrevive a arte como cadáveres das formas antigas de expressão.1 E a cultura genuína, que aqui havia, foi suplantada pelos maneirismos modernos e civilizados — que, de fato, nada são além de formas pasteurizadas das culturas de outros locais absorvidos antes pelo polvo capitalista.
Prova disso é o caráter exótico que é atribuído por nós, aqui da região mais globalizada do país, às sobrevivências de folclore das regiões menos amesquinhadas pela sedução da “modernidade” uniformizante. Estamos mais à vontade diante de fotos de antigas estátuas neoclássicas do que diante da obra do Mestre Vitalino, entendemos melhor de porcelana chinesa do que de cerâmica marajoara, nos agrada mais a música da moda importada da Europa e da América do Norte do que as formas populares de canção.
Que foi feito de nossas festas? Alguém aqui ainda se lembra de ter ouvido uma moda de viola, uma toada, um calango ou um desafio? Estas formas musicais pertencem à rica tradição de Minas Gerais, mas a maioria de nós jamais pegou uma viola, nunca viu uma sanfona de oito baixos, sequer ouviu falar de uma rabeca (eu mesmo me incluo nos dois primeiros grupos). Ninguém aqui saberia dizer o que é uma “torda”, raríssimos terão tomado leite de onça em uma festa junina ou comido batata assada. Não faz parte da memória coletiva de nenhum de nós as melodias da Folia de Reis, da Festa do Divino ou de outras festas de antigamente.
Todas estas coisas que citei fazem parte de um mundo antigo, pisado e esquecido desde que a Redentora resolveu se intrometer nos rumos do século XX e matar nossos projetos autônomos de futuro. A descaracterização da cultura popular, antes restrita aos centros de imigração e ao Rio de Janeiro sempre cosmopolita, se enveredaram pelo interior, deixando atrás de si uma terra arrasada, habitada por seguidores de novela e proprietários de radinhos de pilha sintonizados nas estações cariocas e paulistas.
Houve um tempo em que as estradas do interior eram ocasionalmente pontuadas por cruzeiros de madeira. As pessoas sabiam o que comemorava cada um deles. Os antigos cemitérios de escravos ainda existiam, e havia quem plantasse flores neles, ou os cercasse para que o gado ali não pastasse.
Houve um tempo em que se podia organizar uma festa fincando doze bambus no chão e montando uma coberta com folhas de bananeira para proteger do sereno. Isso era uma “torda”, e debaixo dela o baile acontecia desde que houvesse um sanfoneiro, um barril de pinga, uma bacia de pães recheados com molho de carne moída e um garrafão de vinho. Não precisava de polícia, nem de alvará. Nem de convite e nem de roupa nova.
Vocês podem estar surpresos com meu apego ao passado, achando que pareço um fantasma desses dias antigos, embora seja tão novo. Eu tive tempo de viver algumas destas coisas que estou mencionando, e pelo pouco que vi entendo que tenho motivos suficientes para a saudade. Então eu não venho com regras para nenhuma vanguarda, venho com a história da minha vida e os maus hábitos que os bons autores me ensinaram. Sonho repelir a colonização, pelo menos naquilo que ela mais me mata, e poder falar do que sei e sinto.
Grito por uma arte nacionalista. Cessemos de copiar servis os cânones decadentes de uma Europa grisalha, que em breve será senil.2 Nesses países a morte das raízes pode nos parecer ter sido menos grave, porque o novo mundo que eles criaram ainda parece descender de suas antiguidades. É entre nós que o desenraizamento danifica mais, porque substitui o nosso por algo que é alheio. Somos ainda felizes por termos dentro de nossas fronteiras3 cinco identidades regionais tão fortes que nem mesmo o uso de uma língua única as nivela. Mas deixamos que prossiga a morte lenta dos dialetos e da saborosa prosódia popular. É um crime de lesa-pátria compactuar com essa emasculação de nossa cultura, antes que dê frutos universais.
Na infância, em verdade, porque uma cultura só amadurece no cultivo dos séculos. A nossa data de menos de três, e já está em decadência. O Brasil é um país onde muita coisa que ainda está em construção já está em ruína, como mencionou Gilberto Gil em famoso verso.4 As obras de nosso folclore estavam ainda em fase de elaboração quando foram surpreendidas pela agressão de um século uniformizado e colonial, que as desprezou como se fossem primitivas, que as insultou de “mestiças” numa época racista em que este termo era uma ofensa. Nossos nativistas do passado apenas refletiram sobre a grandiosidade do que estávamos pondo a perder para produzir, a partir da síntese dos elementos abandonados, os últimos brilhos da moribunda cultura de talhe ocidental.
O modernismo foi, sim, canto do cisne do Ocidente enquanto construção ideal, ideológica e política. Foi quando o racionalismo neoclássico perdeu a primazia: abriu-se caminho à liberdade, à expressividade, à anarquia. O resultado é mesmo decadência. Que se manifesta no questionamento do objeto, da obra, da arte. Nossa arte tão moderna não produz mais clássicos. Não procura admirar, mas apenas intrigar. Estranhamos essas obras, nos surpreendemos com esses enigmas, mas dificilmente os tomaríamos como enfeite, como objeto de veneração, como símbolos de identidade. São obras que contemplamos à distância, às vezes até com asco.
Enquanto o Ocidente discute seu desmonte, nós vamos substituindo o que tínhamos de nosso pelas telhas quebradas e restos de estuque roubados da demolição deles. Não sei se tudo já foi feito: apenas suspeito que a casa que se faz com restos sempre se parecerá com restos.
Infelizmente vivemos sob o signo da mediocridade. A obra do medíocre procura, antes de tudo, justificar a si mesma. O objetivo do medíocre é o consenso: no consenso não há necessidade de criatividade, nem de maior capacidade. Os medíocres podem ser inimigos pessoais, mas concordam em suas obras. Ao contrário dos grandes gênios, que às vezes se insultavam por meio dos jornais falando das obras respectivas, mas frequentemente tomavam cafés cordiais quando se encontravam.
O medíocre acredita no fim da História, que tudo já foi dito e feito. Esta ideologia do fim do mundo interessa a quem suspeita que vai morrer. Depois de mim, venha o dilúvio. “Morro com minha pátria”, disse o ditador que, de fato, quase a levou a morte por um capricho seu. Morreu o ditador, a pátria sobreviveu.5 A duras penas, mas sobreviveu. O pós modernismo e seu consenso botam a mão na boca da África, da América, da Ásia, de Marte e de Plutão, de onde quer que se suspeite que alguém ainda pode ter uma ideia original: findou a História, morreram as estéticas, transfigurou-se a arte. Pendurem um urinol na parede do museu, amontoem cachorros mortos na Bienal, vendam borrões de tinta por milhões.6
Sou, porém, um idealista. Acredito que dentro do adormecimento em que vive o resto do Brasil que ainda não foi castrado pela globalização pode ainda existir o anseio pela novidade. Dali é que pode nascer uma nova nacionalidade, uma nova arte.
Nacionalista esta, não por ter ódio ao que alheio, mas por ter amor ao que lhe é próprio. Não por repelir o diferente, mas por difundir dissensos criativos. Não por absolutamente pôr num pedestal nosso folclore, que muito tem de obscurantista e retrógrado, mas por oferecer-lhe espaço para que se transforme seu produto em artefato.
Esse folclore que ignoramos é uma fonte de indícios de futuro. Podemos inventar de nosso jeito, sonhar em nossa língua, contar a nossa história, cunhar nossa moeda. Independência é isso, é algo que quase ninguém conhece, porque quase ninguém tem.
Convido a todos vocês, descrentes da modernidade, ao lodaçal desafiante da oportunidade. Fora do asfalto estéril que só leva a lugares conhecidos. Entrem comigo nesse brejo perigoso, onde certamente alguém vai se afogar. Vamos fundar ali uma outra tribo, uma que não faça pajelança para gringo ver. Tragam seus tambores, alguém pelo amor de deus me arranje uma rabeca porque quero ouvir. Perdidos na insuportável solidão do concreto, vamos imitar pios de pássaros e ler versos em dialeto. Vamor fugir de volta para a região de nossa infância de onde a escola e a academia nos tiraram.
Prometo que não sei como será esse mundo novo que eu sonho ver erguido. Beleza é isso, o imprevisto, o impossível. Mesmo as ruínas do Ocidente serão mais bonitas do que o seu futuro. Procuro profetas para um novo mundo. Venho de Masada, do Langue d’Oc, da Etrúria, de Creta, da Irlanda e do Egito. Venho de Alcácer-Quibir, de Canudos, de Copá e Macchu-Picchu. Venho de lá e estou andando no rumo vago do sertão.
Busquemos essa direção. Gritemos a ambos os lados que o progresso é só um lusco-fusco diante da longa idade da humanidade.
Existe um perigo, no entanto. A proposta que faço é tipicamente talhada para o gosto das elites políticas, e surgirá sempre a tentação fácil de render homenagens ao que já está. Mas a política não é compromissada com estes objetivos, somente com lucros e poder. Verdadeiros artistas não podem compactuar, devem agredir. Esquecer a perspectiva de salários gordos, soldo de mercenários. Sem ilusões: se a política se interessasse por cultura, nosso país estaria bem melhor do que está.
Este texto foi escrito bem antes que eu sequer tivesse acesso à internet, de forma que eu ainda não tinha a compreensão dos fenômenos culturais que ela acabou propiciando. No entanto, continuo acreditando que a frase é verdadeira, porque aquilo que a internet cria de novidade são somente uma variações esvaziadas de formas artísticas preexistentes, com um agravante: vimos toda uma gama de novas tecnologias que mudaram as relações de poder e de consumo do fazer artístico.↩︎
Quem fez História e não ficou o tempo fumando maconha no campus, já enxergava em 1999 que a Europa “subira no telhado” metaforicamente. O que ainda não está claro é se a queda a mata, ou se serve de alerta para que reencontre o rumo.↩︎
Neste trecho me refiro ao estado de Minas Gerais, onde há se encontram falares regionais: o mineiro propriamente dito, do centro do estado; o mineiro-baiano, do norte; o triangulino; o sul-mineiro (estes influenciados, mas não exatamente da mesma forma, pelos falares paulistas) e o mineiro-fluminense, da Zona da Mata, que é um falar de transição entre o carioca e o mineiro central.↩︎
O verso em questão está na canção “Haiti”, e se refere a uma curta menção às “ruínas de uma escola em construção”.↩︎
A frase “Morro, mas morro com a Pátria” foi atribuída a Hitler, mas esta atribuição incorreta é provavelmente fruto da tentativa de lustrar sua biografia. As reais últimas palavras de Hitler foram bem menos elevadas e esta bela frase, naturalmente, veio da boca de um poeta, não de um genocida: Luís de Camões. Em 1998 ou 1999, quando escrevi este texto, eu não tinha como obter confirmação da origem da citação e acabei aceitando atribuí-la a Hitler. Quando o revisei, em 2007, não me atentei ao fato.↩︎
Referência a um curioso fato ocorrido na Nicarágua, em 2007, em que o artista Guillermo Habacuc Vargas teria deixado um cão de rua morrer de fome acorrentado à parede de uma galeria de arte, como parte de uma “instalação”. Embora não haja dúvidas de que a “instalação” realmente aconteceu, ao que parece a morte do cão foi acidental, mas longe de inesperada. Segundo o website “Truth or or Fiction”, que apurou o boato, quando foi retirado das ruas pelo artista, o cão já se encontrava em avançado estado de inanição, quase morto de fome. A ideia era mesmo exibi-lo esquelético e faminto. Mas a instalação não estava prevista para se prolongar muito. Depois o artista pretendia medicar e alimentar o cão. Porém, ele não teve forças para vencer nem o primeiro dia da exposição. Desta forma, embora vargas não tenha propositalmente deixado o cãozinho sem comer para que morresse, ele o pegou quase morto de fome e não o socorreu de imediato, o que resultou na morte do bichinho. Sob um aspecto puramente moral, há pouca diferença.↩︎