Não me refiro à educação escolar, essa que sucessivos governos parecem querer dificultar, mas à educação cidadã e humana, que cabe às famílias e a cada um de nós. Esta é a que faz mais falta, porque se trata da que não precisa de grandes investimentos, nem de grandes construções. Não dispende energia, não move terras e céus, não cria dívidas e nem polui. Não custa livros, não consome dinheiro, não requer transporte. Mas apesar de ser tão barata em termos econômicos, é caríssima em termos de cuidado e de carinho — e cuidado e carinho parecem ser justamente os insumos que mais estão em falta no mundo do tchu e do tcha, do tchan e do Telò. Tem muita gente por aí que sabe fazer o lelelê, mas nada mais.
Tudo isso me vem à mente depois de ter ido assistir à festinha junina da escola da minha filha mais velha.
O evento até que foi bem organizado: tinha seguranças, som profissional, cantina produzindo os salgados fresquinhos, o guichê de fichinhas tinha troco, os banheiros eram bons e as crianças estavam muito bem ensaiadinhas. Vergonha foram os pais.
Apesar de ser evidente a falta de espaço do recinto, logo no começo se verificou que um canto da quadra, mais próximo da entrada, ficou atolado de gente, enquanto o canto oposto ficava vazio. Todo mundo querendo pegar o “melhor lugar” se amontoava junto à passagem, impedindo a entrada e saída dos outros, de modo que não apenas era difícil aos recém chegados verem seus filhos dançando a quadrilha, mas era também difícil para quem já estava conseguir enxergar alguma coisa através do mar de cabeças e braços erguidos com câmeras desesperadas para tirar uma foto qualquer.
Sucessivos pedidos da direção através do microfone foram em vão: ninguém se movia e a muvuca aumentava. Começou a haver acotovelamentos, alguém xingou palavrões altos (em um ambiente escolar, numa festinha de crianças, por Júpiter!). Somente quando a diretora ameaçou pedir aos seguranças que abrissem caminho foi que alguns “educados” concordaram em desobstruir a entrada e passar para os fundos da quadra.
A luta seguinte foi para retirar de dentro da própria quadra os pais desesperados por fotos dos filhos dançando. Tanta gente tinha entrado lá com câmera na mão e merda na cabeça que não havia espaço para as crianças dançarem. Novamente foram necessários apelos repetidos da direção da escola e os pais só se tocaram de lá quando novamente se ameaçou chamar os seguranças.
Liberada a quadra, a direção da escola, desistiu de tentar organizar o resto, pois já havia dito algumas coisas bem pouco elogiosas na tentativa de convencer os pais a abrirem espaço — como, por exemplo, sugerir que eles precisavam dar exemplo para seus filhos ou que a escola era um ambiente de respeito e não um lugar para se dizer palavras chulas e cometer agressões. O resultado foi um verdadeiro caos em torno da quadra, com gente se empurrando e se embicando como dava. Há um antigo axioma da ciência da organização que diz que para todo corredor estreito existe um imbecil disposto a empilhar coisas lá, ou obstruí-lo ele mesmo. Havia muitos destes no local, que, em vez de procurarem um lugar amplo para manter sua conversa ou paquera, ficavam parados no corredor, ainda por cima fazendo cara feia para quem vinha tentando passar. E cada turma que concluía seu turno na quadrilha gerava um tropel de crianças e pais que se espremiam pelas passagens apertadas com o desespero de quem está prestes a cagar nas calças. Essa era a hora em que os imbecis do corredor se sentiam pisoteados ou acotovelados e xingavam ou reclamavam da falta de educação alheia.
Nos lugares amplos a situação não era muito melhor. Onde não houvesse luz direta havia casais dando amassos. Caramba! Em um ambiente escolar? Por que esses animais vão se esfregar pelos corredores de uma escola primária? Não dá para satisfazer o cio em outro lugar, ou esperar para depois da festinha junina das crianças?
Para completar o drama, a escolha das músicas foi de uma lástima terrível. Para uma festa de crianças dançando quadrilha resolveram tocar estas porcarias breganejas que só falam de beber cachaça, fazer lelelê, querer tchu e tcha e coisas piores. E a gente que dizia que a Xuxa era uma influência perniciosa para os “baixinhos” por causa de seus shortinhos. Que valores está transmitindo uma escola que toca numa festa infantil uma música que diz:
Ela chega no baile faz a galera delirar Mascando chiclete doidinha pra namorar De saia curtinha só pra provocar E deixa a macharada delirando sem párar Ela dança mexe mexe eu não vou aguentar.
Eu vou beber cachaça Eu vou tomar mé Eu vou encher a cara por causa dessa mulher.
Muito educativa esta escolha, para acompanhar a quadrilha das crianças do segundo ano, todas na faixa dos sete ou oito anos de idade. Elas vão crescer sabendo que a “macharada” delira sem parar quando uma mulher chega de sainha curta no baile, “doidinha para namorar”, e que para isso a referida “macharada” vai tomar cachaça.
Eu poderia escrever vinte páginas de lamentos sobre as coisas que pensei e senti, mas chega que me dá nojo. Alguns vão dizer que minha reclamação é “puritana” e que “é isso que as crianças encontram na sociedade em que vivem”, mas a escola não é “a sociedade”, ela precisa ser, e deveria ao menos pretender ser, um microcosmo de excelência, um lugar melhor do que a sociedade, onde se ensina aos pequenos um mundo ideal, que sonhamos que exista para eles, já que não existiu para nós. Não é lugar de endossar o mé que a “macharada” toma por causa de mulheres doidas de sainha curta, mas de ensinar justamente estas crianças a perceberem a brutalidade, a grossura e a estupidez que são necessárias para que uma pessoa conviva com essa música sem revoltar-se.
Enquanto nossa escola toca nas festinhas juninas infantis uma trilha sonora que não tocava nem em puteiro até há bem poucos anos, as verdadeiras tradições juninas são esquecidas: as crianças dançaram em estilo country.