Esta semana a minha bolha nas redes sociais se agitou com a discussão sobre o artigo de Santiago Nazarián para a Folha de São Paulo, em que se aborda um tema que parece incomodar aos autores de ficção fantástica: ela continua supostamente relegada a um papel marginal — desprezada pela crítica e incapaz de “deixar uma marca” na cultura nacional, seja lá o que isso quer dizer. Acredito que esse debate está, de saída, viciado por três problemas:
- Nossos autores raramente possuem uma conexão profunda com a nossa tradição cultural e literária, o que os faz abordarem o Brasil de uma maneira não muito diferente do que um estrangeiro o faria.
- A rebeldia dos praticantes da chamada “cultura pop”, que insistem em ocupar espaços que não são os seus.
- Um incompreensão da realidade do leitor nacional sob um prisma político, causada pela alienação política do próprio autor.
Embora nem todos os autores da LitFanBr padeçam desses problemas, quando estão imersos nesse caldo de cultura eles absorvem esse jargão e esses paradigmas, então esses equívocos se manifestam e surge uma idealização do Brasil “como deveria ser”, que parece muito inesperadamente diversa do Brasil “como é”.
O próprio artigo de Nazarián começa por admitir que “nunca houve um momento tão bom quanto o atual”, em que proliferam os festivais, os autores batem recordes de vendas e novas produções de cinema e televisão levam a fantasia a novos públicos. Paradoxalmente, porém, o autor diz que “nunca houve momento pior”. O primeiro parágrafo do artigo é um oxímoro e uma esfinge — que o autor pouco consegue decifrar.
O diagnóstico de Nazarián é que “apesar de apelo comercial e sucesso relativo de público, a literatura fantástica brasileira permanece sempre à margem, não apenas desprezada pela crítica, mas incapaz de deixar uma marca na cultura nacional.” Atentem para esses grifos. O autor se incomoda com a perecibilidade da LitFanBr porque “a literatura de entretenimento é feita para ser de consumo fácil e rápido — comunica-se com o instante, mas não tem lastro para permanecer.” É por isso que a LitFanBr tem dificuldade em criar sua história e deixar sua marca na cultura nacional.
Penso que a crítica de Nazarián padece dos três problemas citados no começo.
O primeiro se refere ao afastamento que as gerações de hoje têm em relação à nossa cultura e ao nosso passado. Para os jovens de hoje — mesmo os mais cultos — nossas tradições são remotas, inferiores ou incompletas; estão em desaparecimento ou já não têm mais significado no mundo moderno. Isso faz com que a aproximação do jovem em relação à cultura nacional sempre se faça pelo lado paradidático (geralmente lembrado em agosto, o “mês do folclore”) ou exótico (quando a brasilidade não é mais que outro entre vários elementos possíveis para dar carne à uma história). Não vivemos mais os nossos mitos, nós os substituímos por mitos importados, aprendidos através da cultura pop estrangeira que formou a nossa infância. Entre os de minha idade, há mais gente que conheça o Super-herói Americano, um obscuro personagem de televisão cujo seriado era exibido pelo SBT entre 1985 e 1989, do que a mãe do ouro, um personagem muito presente no folclore mineiro do século XIX e inícios do século XX.
Em que isso influi no diagnóstico que Nazarián faz de nossa LitFan? Talvez não pareça, mas essa falta de conexão com o sagrado, com místico e com o folclórico não é parte de nossa identidade nacional. Essa falta de conexão é fruto de uma política cultural de supressão da brasilidade.
Por mais de cem anos — com breves intervalos, geralmente restritos a uma elite — a ideologia nacional do Brasil foi a imitação da cultura europeia. Nossa religião autóctene foi suprimida através do genocídio dos indígenas. As religiões de matriz africana foram perseguidas pela polícia até 1950 e sua prática ainda hoje é considerada um desvio moral, uma coisa de marginais, um sintoma de nosso atraso. Para avançar na vida sempre se orientou ao jovem pobre que abandonasse a umbanda, que esquecesse suas superstições, que agisse racionalmente.
A política de branqueamento tinha um lado cultural, tinha um aspecto de apagamento de todo traço identitário que não fosse europeu, ou que não tivesse sido, pelo menos, intermediado pela visão do europeu.
Não é que o Brasil não tenha “tradição no fantástico”. Sempre houve em cada geração autores que se aventuraram pelo gênero e a maior obra de nossa literatura, Memórias Póstumas de Brás Cubas, narrada por um defunto, não foi classificada como “literatura fantástica”, mas como “realismo”, por razões que só não são mais absurdas que a tese de que o Brasil não tem tradição no gênero.
A tradição existe, ela se manifesta a cada geração, mas a ideologia predominante relega sempre esses trabalhos à “segunda divisão” ou acha um jeito de reclassificá-los fora da estante da fantasia. A tradição existe e tem deixado marcas indeléveis na cultura nacional, tanto que é necessário que a cada geração se reiterem os argumentos preconceituosos contra a índole nacional “supersticiosa” e “atrasada”.
A literatura nacional — e isso não se limita à LitFan —não tem um problema de continuidade, mas de interpretação. Convencionou-se que a literatura fantástica é um gênero “menor”, então, quando um autor “grande” produz uma obra “grande”, ela não será classificada no gênero fantástico nem se o personagem narrador for um morto, nem se ela mencionar um bruxo fabricante de lentes enfeitiçadas, nem se narrar a história de um político que se transforma em lobisomem, nem se a trama estiver centrada na ação de um grupo de cadáveres insepultos que se reanimam.
O problema aqui é que a crítica não quer enxergar a tradição brasileira de literatura fantástica e os praticantes atuais de literatura fantástica só reconhecem como parte do gênero obras que legitimem as suas próprias. Porém eles, como eu e tantos outros, estão desenraizados da cultura nacional e o fato de terem de cortejar um mercado saturado e conformado com a imposição estrangeira faz com que se rendam a modelos estrangeiros. Eles não estão continuando nenhuma tradição brasileira de literatura, fantástica ou não, mas copiando modelos e estratégias que chegaram há pouco de fora (cacófato intencional).
Sendo assim, dizerem que o Brasil não tem tradição na literatura fantástica soa como uma mistura de ingenuidade e hipocrisia. Perpetuam um diagnóstico feito pela crítica de que dizem discordar e, ao mesmo tempo, não tentam semear aquilo que lamentam não se cultivar.
Isso decorre, em parte, de gostarem do boom da literatura fantástica, mesmo que sob um prisma comercial. É bom participar de festivais, vender muitos livros e ocasionalmente ter suas obras adaptadas para o audiovisual. Se podem conseguir isso aderindo a um modelo estrangeiro, que lhes importa que esse modelo sufoque a cultura nacional?
Não é que eles desejem que viceje uma literatura fantástica nacional, eles querem ser reconhecidos como os verdadeiros praticantes desta. Usam a si próprio como régua. Seu objetivo não é criar nem perpetuar uma tradição, é entrar para a Academia. Estão de tal maneira convencidos de que praticam a literatura fantástica nacional que não lhes passa pela cabeça que talvez pratiquem uma “literatura de invasão”.
Não quero aqui fazer juízos de valor sobre essa literatura de invasão. Isso já tem precedentes históricos e, no fim de contas, o que importa é haver uma cultura moribunda e uma que pede passagem. Foi assim na Irlanda, no século XIX, quando o inglês substituiu o gaélico como veículo da literatura. Nosso caso não é extremo a ponto de se substituir uma língua, mas o efeito não fica muito longe.
O terceiro aspecto, o da alienação política, é o que ocorre, se pudermos caridosamente supor ingenuidade em vez de malícia, quando esses autores perpetuam algo que destrói aquilo que da boca para fora dizem defender. O autor que reclama de não haver uma tradição de literatura fantástica no Brasil não pode ser o mesmo que escreve obras baseadas em mitologias estrangeiras ou que aplica aos nossos mitos um filtro exótico. Não pode ser o mesmo que adota paradigmas de fora.
O problema da literatura fantástica no Brasil é que nossos autores, em sua maioria, têm muita dificuldade para descobrir sua brasilidade, preferem buscar sua conexão com a internacionalidade. Nesse cenário, o fantástico local é um obstáculo por ser local, mas o realismo é universal.